|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
MARCELO COELHO
A globalização e as loucuras dos terráqueos
Suco de macarrão à bolonhesa. Água mineral com pérolas moídas. Pasta de dente para
cachorros. Um spray com tinta
verde que serve como maquiagem
para gramados no inverno. Papel
higiênico impresso com lições de
inglês. Um frasco de extrato de
carrapato para arranjar namorado. Pistola de plástico especialmente desenhada para crianças
brincarem de roleta-russa.
Coisas desse tipo -e outras,
mais chocantes, que hesito em
descrever- fazem parte do livro
"1000 Extra/ordinary Objects",
com texto em inglês e espanhol,
publicado pela editora Taschen,
que comprei outro dia na Fnac. O
livro é produzido pela revista
"Colors", da Benetton, e tem mais
de 700 páginas com textos e fotos,
muitas delas tiradas pelo famoso
Oliviero Toscani.
Os polêmicos outdoors da Benetton desapareceram já faz algum tempo, mas o livro parece
reavivar a estranha mistura de
mau gosto, correção política, deboche, pacifismo e malignidade
que caracterizava as campanhas
publicitárias da empresa. Não há
como reagir de um modo só a esse
impressionante catálogo da estupidez, da fragilidade, das fantasias, das carências que acometem
a população humana.
No caso dos outdoors, a ambiguidade ideológica da Benetton
era mais ou menos fácil de decifrar. Veja-se, por exemplo, a célebre foto de um jovem no hospital
morrendo de Aids, com a família
à sua volta, numa composição
que lembrava um quadro da Renascença. Num canto, a frase
contrastante, quase sem sentido:
"United Colors of Benetton".
O apelo ao consumo, negado
pelo pungente interesse humano
da imagem, ganhava assim uma
legitimação paradoxal. É como se
dissesse: "Certo, o mundo tem tragédias, sabemos disso, mas também é legal usar camisas Benetton, porque a vida continua". Ou
ainda: "Sim, isto aqui é apenas
um anúncio, mas repare como estamos preocupados com a doença, com a guerra, com o racismo,
com a fome no mundo".
A grife se apropriava do tema
da globalização, celebrando-se a
si mesma como falsa instituição
humanitária. A Benetton aparecia como um avesso da ONU; suas
fotos, mesmo as mais chocantes,
funcionavam como uma espécie
de denúncia impassível, puramente factual, sem apontar para
nenhuma utopia -exceto a de
um mundo onde as roupas Benetton continuam a existir.
O livro "1000 Extra/ordinary
Objects" não tem propósito publicitário; trata de documentar, com
certo mundocanismo, a variedade e a monotonia das necessidades humanas, expressas em objetos recolhidos de todas as partes
do globo.
Assim, a água com pérolas moídas é consumida em Hollywood:
faz bem para a pele e constitui
ótima fonte de cálcio. O suco de
macarrão foi desenvolvido pelo
exército americano para consumo dos soldados feridos em combate que não possam ingerir alimentos sólidos. O extrato de carrapato é usado em rituais mágicos na Venezuela. A pistola de
brinquedo para roleta-russa vem
do Japão -lugar de origem de
muitos outros objetos curiosos. Lá
existe um massageador de pés cujas bolinhas têm cara de executivo: você terá a ilusão de estar pisoteando seu chefe.
Qual o sentido desse livro? Certamente, atende ao nosso gosto
pelo bizarro. Expõe, com um ar
meio divertido, a estranheza de
tudo -das crenças, dos hábitos
alimentares, das formas de amar
e de matar que existem pelo mundo.
Há um tom de complacência
com o absurdo. O livro mostra,
sem maiores comentários, um
brinquedo artesanal da Indonésia, feito de tronco de banana,
que serve para disparar agulhas
nas pessoas; em outra página, vemos minas terrestres que imitam
perfeitamente excrementos de camelo.
Essa mesma complacência, entretanto, torna mais ácida a denúncia. Objetos assustadores são
descritos como se fossem as coisas
mais normais do mundo, e objetos normais vêm acompanhados
de textos contundentes. A simples
foto de um salgadinho vem com
uma legenda terrível enumerando todos os produtos químicos
que contém.
O livro é antitabagista, pacifista, a favor da ecologia, preocupado com as drogas e com a miséria
do mundo. É esta, grosso modo, a
ideologia "do bem" num ambiente que insiste em negar validade
para qualquer transformação política e econômica mais profunda.
Para não ser "bonzinho" demais -nossa consciência social
globalizada foge a todo preço da
ingenuidade-, o texto é irônico o
tempo todo. Imita-se, a cada página, a linguagem da propaganda e chega-se a dar o preço em dólar das armas, das drogas e dos
demais objetos sinistros fotografados.
Trata-se, contudo, de uma ironia acrítica; "1000 Extra/ordinary
Objects" produz mais desconforto
que inconformismo. O catálogo
de absurdos é, de algum modo,
apresentado como se viesse de um
planeta distante; "olhem só"
-parece dizer- "as loucuras
dos terráqueos".
Não seria este, aliás, um dos
efeitos mais estranhos da globalização? Às vezes parece que se deixa de falar do "ser humano", para se falar dos "habitantes do planeta". Não falo dos que defendem
pura e simplesmente o neoliberalismo, o consenso de Washington,
essas coisas todas.
Penso numa espécie de "cidadão global" consciente dos problemas do mundo, mas cético demais para querer resolvê-los; solidário, mas a anos-luz de distância do que acontece; para quem
guerras civis, massacres, fanatismo não mais são vistos como males a erradicar, e, sim, como comportamentos inerentes à nossa espécie.
Um livro como "1000 Extra/ordinary Objects" reflete bem essa
mentalidade, sintoma talvez de
uma impotência política que milhares de ONGs não conseguiram
ainda superar. O interesse pelo
outro então se transforma em voyeurismo; qualquer capacidade
de reagir ao absurdo se anestesia
numa forma de desesperada tolerância. Tudo aquilo que, antigamente, era visto como produto de
uma lógica econômica perversa se
torna apenas uma peça a mais
num museu de horrores variados,
que se amontoam sem razão.
Texto Anterior: Música: Mônica Salmaso é elogiada após show nos EUA Próximo Texto: Teatro: Consuelo revira gavetas Índice
|