São Paulo, quarta-feira, 16 de janeiro de 2002

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MARCELO COELHO

A globalização e as loucuras dos terráqueos

Suco de macarrão à bolonhesa. Água mineral com pérolas moídas. Pasta de dente para cachorros. Um spray com tinta verde que serve como maquiagem para gramados no inverno. Papel higiênico impresso com lições de inglês. Um frasco de extrato de carrapato para arranjar namorado. Pistola de plástico especialmente desenhada para crianças brincarem de roleta-russa.
Coisas desse tipo -e outras, mais chocantes, que hesito em descrever- fazem parte do livro "1000 Extra/ordinary Objects", com texto em inglês e espanhol, publicado pela editora Taschen, que comprei outro dia na Fnac. O livro é produzido pela revista "Colors", da Benetton, e tem mais de 700 páginas com textos e fotos, muitas delas tiradas pelo famoso Oliviero Toscani.
Os polêmicos outdoors da Benetton desapareceram já faz algum tempo, mas o livro parece reavivar a estranha mistura de mau gosto, correção política, deboche, pacifismo e malignidade que caracterizava as campanhas publicitárias da empresa. Não há como reagir de um modo só a esse impressionante catálogo da estupidez, da fragilidade, das fantasias, das carências que acometem a população humana.
No caso dos outdoors, a ambiguidade ideológica da Benetton era mais ou menos fácil de decifrar. Veja-se, por exemplo, a célebre foto de um jovem no hospital morrendo de Aids, com a família à sua volta, numa composição que lembrava um quadro da Renascença. Num canto, a frase contrastante, quase sem sentido: "United Colors of Benetton".
O apelo ao consumo, negado pelo pungente interesse humano da imagem, ganhava assim uma legitimação paradoxal. É como se dissesse: "Certo, o mundo tem tragédias, sabemos disso, mas também é legal usar camisas Benetton, porque a vida continua". Ou ainda: "Sim, isto aqui é apenas um anúncio, mas repare como estamos preocupados com a doença, com a guerra, com o racismo, com a fome no mundo".
A grife se apropriava do tema da globalização, celebrando-se a si mesma como falsa instituição humanitária. A Benetton aparecia como um avesso da ONU; suas fotos, mesmo as mais chocantes, funcionavam como uma espécie de denúncia impassível, puramente factual, sem apontar para nenhuma utopia -exceto a de um mundo onde as roupas Benetton continuam a existir.
O livro "1000 Extra/ordinary Objects" não tem propósito publicitário; trata de documentar, com certo mundocanismo, a variedade e a monotonia das necessidades humanas, expressas em objetos recolhidos de todas as partes do globo.
Assim, a água com pérolas moídas é consumida em Hollywood: faz bem para a pele e constitui ótima fonte de cálcio. O suco de macarrão foi desenvolvido pelo exército americano para consumo dos soldados feridos em combate que não possam ingerir alimentos sólidos. O extrato de carrapato é usado em rituais mágicos na Venezuela. A pistola de brinquedo para roleta-russa vem do Japão -lugar de origem de muitos outros objetos curiosos. Lá existe um massageador de pés cujas bolinhas têm cara de executivo: você terá a ilusão de estar pisoteando seu chefe.
Qual o sentido desse livro? Certamente, atende ao nosso gosto pelo bizarro. Expõe, com um ar meio divertido, a estranheza de tudo -das crenças, dos hábitos alimentares, das formas de amar e de matar que existem pelo mundo.
Há um tom de complacência com o absurdo. O livro mostra, sem maiores comentários, um brinquedo artesanal da Indonésia, feito de tronco de banana, que serve para disparar agulhas nas pessoas; em outra página, vemos minas terrestres que imitam perfeitamente excrementos de camelo.
Essa mesma complacência, entretanto, torna mais ácida a denúncia. Objetos assustadores são descritos como se fossem as coisas mais normais do mundo, e objetos normais vêm acompanhados de textos contundentes. A simples foto de um salgadinho vem com uma legenda terrível enumerando todos os produtos químicos que contém.
O livro é antitabagista, pacifista, a favor da ecologia, preocupado com as drogas e com a miséria do mundo. É esta, grosso modo, a ideologia "do bem" num ambiente que insiste em negar validade para qualquer transformação política e econômica mais profunda.
Para não ser "bonzinho" demais -nossa consciência social globalizada foge a todo preço da ingenuidade-, o texto é irônico o tempo todo. Imita-se, a cada página, a linguagem da propaganda e chega-se a dar o preço em dólar das armas, das drogas e dos demais objetos sinistros fotografados.
Trata-se, contudo, de uma ironia acrítica; "1000 Extra/ordinary Objects" produz mais desconforto que inconformismo. O catálogo de absurdos é, de algum modo, apresentado como se viesse de um planeta distante; "olhem só" -parece dizer- "as loucuras dos terráqueos".
Não seria este, aliás, um dos efeitos mais estranhos da globalização? Às vezes parece que se deixa de falar do "ser humano", para se falar dos "habitantes do planeta". Não falo dos que defendem pura e simplesmente o neoliberalismo, o consenso de Washington, essas coisas todas.
Penso numa espécie de "cidadão global" consciente dos problemas do mundo, mas cético demais para querer resolvê-los; solidário, mas a anos-luz de distância do que acontece; para quem guerras civis, massacres, fanatismo não mais são vistos como males a erradicar, e, sim, como comportamentos inerentes à nossa espécie.
Um livro como "1000 Extra/ordinary Objects" reflete bem essa mentalidade, sintoma talvez de uma impotência política que milhares de ONGs não conseguiram ainda superar. O interesse pelo outro então se transforma em voyeurismo; qualquer capacidade de reagir ao absurdo se anestesia numa forma de desesperada tolerância. Tudo aquilo que, antigamente, era visto como produto de uma lógica econômica perversa se torna apenas uma peça a mais num museu de horrores variados, que se amontoam sem razão.



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