São Paulo, sexta-feira, 16 de janeiro de 2004

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CRÍTICA

História precisava ser contada, mas escorre pelo ralo

PEDRO BUTCHER
CRÍTICO DA FOLHA

Não é difícil entender porque "Em Nome de Deus" ganhou o Leão de Ouro em Veneza. Competições cinematográficas são no mínimo complicadas e, quando aparece um filme assim, "acima de qualquer suspeita", júris tendem a tomar a decisão menos polêmica, aquela que dificilmente será contestada.
Trata-se de um filme-denúncia. Conta uma história obscura da Irlanda católica, daquelas que o mundo precisava conhecer: uma história de mulheres oprimidas, mantidas como escravas em um convento de freiras perversas. Como "ser contra" um filme desses?
Mas, é claro, não se trata aqui de ser contra ou a favor. O fato é que "Em Nome de Deus" teria muito mais impacto se o diretor Peter Mullan (o ótimo ator de "Meu Nome É Joe", de Ken Loach) não se tivesse deixado levar pela facilidade da denúncia pela denúncia. Ele explora as características mais evidentes de sua "história real" e faz questão de sublinhar o óbvio.
O filme nos conta que, na Irlanda, em pleno século 20 (a ação se passa em 1964), mulheres consideradas pecadoras eram enviadas para conventos, onde trabalhavam sem qualquer remuneração e eram submetidas a toda sorte de humilhações. No prólogo, vemos três jovens: Margaret foi estuprada pelo primo; Rose, mãe solteira, acaba de ter um filho que é entregue para a adoção contra sua vontade, e Bernadette, órfã, sorri para rapazes no orfanato, e por isso é considerada pecadora.
Vê-se, a partir daí, todo tipo de brutalidade. As freiras se valerão do exercício dos pequenos poderes (a humilhação pública, o tratamento inferiorizado) até a violência mais brutal. Suicídio, loucura e revolta ocasional são as únicas opções daquelas jovens, que vivem o inferno na Terra.
Peter Mullan não se contenta em mostrar, ele precisa comentar o que mostra. Então, focaliza a frase "Deus é justo", encravada na parede do convento. Está dizendo: "que ironia". Dá um close nas mãos da freira que conta o dinheiro avidamente enquanto ela passa um sermão moralista em suas escravas brancas. "Quanto cinismo." Ao mesmo tempo, evita os temas mais difíceis, como a repressão sexual e a contextualização política, que passam quase despercebidos. E é assim, então, que um grande tema, "uma história que precisava ser contada", se dilui e escorre pelo ralo.


Em Nome de Deus
The Magdalene Sisters
 
Produção: Irlanda/Reino Unido, 2002
Direção: Peter Mullan
Com: Geraldine McEwan, Dorothy Duffy
Quando: a partir de hoje nos cines Bristol, Villa-Lobos e circuito



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