São Paulo, sexta-feira, 16 de janeiro de 2004

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CINEMA/ESTRÉIA

"EM NOME DE DEUS"

Diretor mostra a opressão nas irmandades religiosas

Peter Mullan apresenta feridas da Irlanda católica

ROCÍO GARCÍA
DO "EL PAÍS"

É difícil imaginar Peter Mullan abandonando sua luta e sua militância. Na profissão ou na vida. E não com os ventos belicosos que sopram. Em seus filmes, esse ator e diretor escocês de 49 anos oferece bons e estimulantes exemplos.
O mais recente surge em "Em Nome de Deus", seu segundo longa como diretor, que lhe valeu o Leão de Ouro no Festival de Veneza de 2002 e no qual abre os velhos cárceres da Igreja Católica na Irlanda em uma homenagem valente e apaixonada às 30 mil mulheres que viveram um autêntico pesadelo neles, por anos.
Na vida, o faz freqüentemente. Quando fala da escalada bélica, não tem dúvida do papel que os cineastas deveriam desempenhar nessa situação. "Temos a obrigação de tentar descobrir e ensinar às pessoas onde fica a raiz disso tudo, e relembrar ao público o valor da vida humana. Chegamos a um estado em que a vida de um europeu ou norte-americano vale muito mais que a de qualquer outro cidadão. De alguma maneira, precisamos, como cineastas, lembrar aos europeus que a vida humana é importante", afirmou.
Como as vidas das 30 mil mulheres recolhidas aos conventos de santa Madalena na Irlanda, dirigidos por freiras católicas. Lá, as meninas enviadas por suas famílias ou orfanatos viviam encerradas, muitas por toda a vida, obrigadas a trabalhar em condições deploráveis e sem remuneração para expiar seus pecados, como o de serem mães solteiras, o de terem sofrido estupro ou o de serem femininas demais.
O filme, que estréia hoje no Brasil, relata a história de quatro meninas sofrendo terror, violência e humilhação nesses conventos, o último dos quais foi fechado em 1996. "Todas as sobreviventes com quem conversei depois da estréia do filme, sem exceção, me disseram o mesmo: obrigado por ter feito esse filme, mas a realidade era muitíssimo pior."
Mullan estabeleceu um paralelo interno entre as vidas trágicas das jovens irlandesas e a situação em que viviam as mulheres no Afeganistão do Taleban. "Redigir o roteiro coincidiu com uma campanha de protesto que eu e amigos realizamos, enviando cartas a parlamentares britânicos sobre a condição das mulheres afegãs sob o Taleban. São situações perfeitamente comparáveis."
Todos os acontecimentos narrados em "Em Nome de Deus" são verdadeiros, mas os personagens são fictícios.
A reação da Igreja Católica ao filme variou amplamente, de acordo com o diretor. "Em Veneza, o condenou. Depois, quando estreou na Irlanda, houve total silêncio. E na Escócia, a Igreja Católica o recomendou aos católicos. Desconheço os motivos da mudança, não sei é uma tática ou um legítimo ato de contrição."
No filme, Mullan se reservou um papel pequeno e duro, como pai de uma das meninas e responsável por encerrá-la no convento. "Em muitos sentidos, o pior opressor de alguém é a pessoa mesma. Creio que esses lugares não teriam podido existir sem a cumplicidade das vítimas. O verdadeiro cárcere estava em suas mentes. Era uma opressão que a Igreja Católica e a Irlanda conseguiam impor às famílias, que reprimiam a si mesmas. Não fosse assim, que pai levaria a filha a um lugar como esse?"


Tradução Paulo Migliacci


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