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CARLOS HEITOR CONY
A grande cena de Valdomiro e da velha
Era um edifício como todos
os outros, tão igual que também possuía seus casos escabrosos, quase todos provocados e levados a efeito no apartamento do
Valdomiro, candidato crônico a
vereador pelo bairro e que, não se
sabe como nem por quê, escreveu
uma novela intitulada "A Vida",
onde deitou moral contra a jogatina, os cassinos, a corrupção política, mas enaltecendo os pobres,
as virtudes e o patriotismo. "Inebriantes mulheres" fumando "cigarros turcos" em longas piteiras
"de marfim do mais fino lavor",
em alcovas de "luxo asiático",
pervertem o pobre Damasceno,
abnegado chefe de família que joga na sedução do "mefistofélico
pano verde" a tranqüilidade do
lar, o sustento dos filhos e o dinheiro do banco do qual era caixa.
Não obteve o sucesso que esperava. Dedicou-se então às mulheres, no que foi compensado e recompensado de suas amarguras.
Grossos escândalos sacudiram o
edifício. Em certa tarde de setembro, um marido resolveu acompanhar a esposa prevaricadora
até o antro de sua vergonha, motivo pelo qual foi dar com os costados e com o revólver no apartamento do Valdomiro.
Ao ver a esposa transpor a soleira fatal, mortas as esperanças de
um remotíssimo equívoco, o marido revelou-se um temperamental, quis dar tiros, berrou que ia
dar tiros e, unindo à ameaça um
gesto condizente, puxou do revólver, um velho Taurus já enferrujado e desacreditado, mas que
serviu para dar tremedeiras em
todo mundo de maneira geral e
no Valdomiro de maneira especial.
Aproveitando a saída de emergência, Valdomiro saiu do apartamento, deixando a mulher
abandonada à ira e ao Taurus do
marido. Precipitou-se pelas escadas, procurando uma solução
qualquer. Mas o cérebro estava
embotado, não pensava nem sentia nada, a não ser -conforme
confessou no dia seguinte- uma
forte vontade de ir à latrina.
Foi quando, segundo pensou na
hora, a Providência Divina, que
apressadamente invocara entre
um lance e outro das escadas, se
fez sentir: deu de cara com a porta
semi-aberta de um dos apartamentos. Não necessitaria forçar
porta alguma, havia uma aberta,
à sua disposição. Bem protegido,
explicaria a situação: um mal-entendido, um equívoco, apelaria
para a solidariedade de vizinhos e
esperaria que a ira e a arma de
seu perseguidor fossem amainadas e recolhidas pelo bom senso,
pela prudência ou pela polícia.
Naquele apartamento, morava
uma sexagenária, dona de alguns
bens, vivendo em conforto e respeitabilidade. Desde que se mudara para o edifício, reparou naquele homenzarrão de rosto
grande e bochechudo. Ela enviuvara havia 15 anos, Ficara sem
um afeto, sem um filho, um sobrinho, um afilhado, um ex-admirador. Nada e ninguém. Não suportou ver Valdomiro todos os dias,
nasceu-lhe a paixão feroz, uma
doença que a levaria ao hospício
ou à cadeia -conforme confessava a si mesma em dias de maior
desespero.
Tantas fez, tantas divindades
invocou, tantas macumbas pagou
que naquele dia lhe entra pela
porta adentro, apavorado e belo
em sua excitação, o eleito de sua
carne.
- Minha senhora -Valdomiro tentou explicar- estou envolvido em lamentável equívoco e,
apesar de inocente...
A velha ouvira os berros do marido ultrajado, deixara a porta semicerrada à espera. Além do
mais, o marido já atingira o corredor do primeiro andar e conclamava aos berros para que o adúltero aparecesse em cena para
morrer "como homem!". Valdomiro sabia que o "homem" que estava sendo exigido era ele mesmo,
escafedeu-se pelo apartamento
providencial, trancou a porta,
ajudando a velha a deslocar um
armário para melhor entrincheirar-se. E mais: ela própria foi fazer um cafezinho para rebater a
excitação que fazia as pernas de
Valdomiro tremerem. Finalmente, ela se explicou. Condicionou
sua cumplicidade a alguns momentos de cama. E nem adiantou
a Valdomiro ponderar que naquele transe por que passava, "naquela provação", como disse
-ser-lhe-ia custoso submeter-se
a tanto. Tentou adiar, outro dia
topava. Mas a velha preferia o
pássaro na mão e o Valdomiro na
cama.
Ele apelou para a imaginação,
buscou detalhes eróticos que conhecia, inventou outros, relembrou as mulheres que possuíra, as
que não possuíra, recitou mentalmente dois terços do "Julgamento
de Frinéia", que um dia, na adolescência, achara lúbrico.
A tais esforços deveu um início
de virilidade. Mas, na mesma hora, ouviu as ameaças do marido
que esbravejava no corredor:
- Eu dou um tiro nesse filho-da-puta! Hoje sai um cadáver daqui de dentro!
Valdomiro tinha a certeza de
que o cadáver anunciado era o
dele. Esfriou de vez. A velha tomou a iniciativa. Ameaçou gritar, chamar o perseguidor, escancarar as portas do apartamento.
E, naquela mesma cama onde se
sentia impotente, ele terminaria
varado.
Valdomiro viu-se nu, ensangüentado na cama estranha. Não
desejava encerrar seus dias de
maneira cruenta e inglória.
A velha não cedia, nunca mais
teria tamanha oportunidade. Foi
então que Valdomiro, todo grandalhão e desajeitado, para não
sair cadáver daquela cama, cumpriu mal e porcamente o seu dever. No dia seguinte, estava rouco,
um cachecol enrolado no pescoço,
chupando pastilhas de hortelã.
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