São Paulo, sexta-feira, 16 de janeiro de 2004

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CARLOS HEITOR CONY

A grande cena de Valdomiro e da velha

Era um edifício como todos os outros, tão igual que também possuía seus casos escabrosos, quase todos provocados e levados a efeito no apartamento do Valdomiro, candidato crônico a vereador pelo bairro e que, não se sabe como nem por quê, escreveu uma novela intitulada "A Vida", onde deitou moral contra a jogatina, os cassinos, a corrupção política, mas enaltecendo os pobres, as virtudes e o patriotismo. "Inebriantes mulheres" fumando "cigarros turcos" em longas piteiras "de marfim do mais fino lavor", em alcovas de "luxo asiático", pervertem o pobre Damasceno, abnegado chefe de família que joga na sedução do "mefistofélico pano verde" a tranqüilidade do lar, o sustento dos filhos e o dinheiro do banco do qual era caixa.
Não obteve o sucesso que esperava. Dedicou-se então às mulheres, no que foi compensado e recompensado de suas amarguras.
Grossos escândalos sacudiram o edifício. Em certa tarde de setembro, um marido resolveu acompanhar a esposa prevaricadora até o antro de sua vergonha, motivo pelo qual foi dar com os costados e com o revólver no apartamento do Valdomiro.
Ao ver a esposa transpor a soleira fatal, mortas as esperanças de um remotíssimo equívoco, o marido revelou-se um temperamental, quis dar tiros, berrou que ia dar tiros e, unindo à ameaça um gesto condizente, puxou do revólver, um velho Taurus já enferrujado e desacreditado, mas que serviu para dar tremedeiras em todo mundo de maneira geral e no Valdomiro de maneira especial.
Aproveitando a saída de emergência, Valdomiro saiu do apartamento, deixando a mulher abandonada à ira e ao Taurus do marido. Precipitou-se pelas escadas, procurando uma solução qualquer. Mas o cérebro estava embotado, não pensava nem sentia nada, a não ser -conforme confessou no dia seguinte- uma forte vontade de ir à latrina.
Foi quando, segundo pensou na hora, a Providência Divina, que apressadamente invocara entre um lance e outro das escadas, se fez sentir: deu de cara com a porta semi-aberta de um dos apartamentos. Não necessitaria forçar porta alguma, havia uma aberta, à sua disposição. Bem protegido, explicaria a situação: um mal-entendido, um equívoco, apelaria para a solidariedade de vizinhos e esperaria que a ira e a arma de seu perseguidor fossem amainadas e recolhidas pelo bom senso, pela prudência ou pela polícia.
Naquele apartamento, morava uma sexagenária, dona de alguns bens, vivendo em conforto e respeitabilidade. Desde que se mudara para o edifício, reparou naquele homenzarrão de rosto grande e bochechudo. Ela enviuvara havia 15 anos, Ficara sem um afeto, sem um filho, um sobrinho, um afilhado, um ex-admirador. Nada e ninguém. Não suportou ver Valdomiro todos os dias, nasceu-lhe a paixão feroz, uma doença que a levaria ao hospício ou à cadeia -conforme confessava a si mesma em dias de maior desespero.
Tantas fez, tantas divindades invocou, tantas macumbas pagou que naquele dia lhe entra pela porta adentro, apavorado e belo em sua excitação, o eleito de sua carne.
- Minha senhora -Valdomiro tentou explicar- estou envolvido em lamentável equívoco e, apesar de inocente...
A velha ouvira os berros do marido ultrajado, deixara a porta semicerrada à espera. Além do mais, o marido já atingira o corredor do primeiro andar e conclamava aos berros para que o adúltero aparecesse em cena para morrer "como homem!". Valdomiro sabia que o "homem" que estava sendo exigido era ele mesmo, escafedeu-se pelo apartamento providencial, trancou a porta, ajudando a velha a deslocar um armário para melhor entrincheirar-se. E mais: ela própria foi fazer um cafezinho para rebater a excitação que fazia as pernas de Valdomiro tremerem. Finalmente, ela se explicou. Condicionou sua cumplicidade a alguns momentos de cama. E nem adiantou a Valdomiro ponderar que naquele transe por que passava, "naquela provação", como disse -ser-lhe-ia custoso submeter-se a tanto. Tentou adiar, outro dia topava. Mas a velha preferia o pássaro na mão e o Valdomiro na cama.
Ele apelou para a imaginação, buscou detalhes eróticos que conhecia, inventou outros, relembrou as mulheres que possuíra, as que não possuíra, recitou mentalmente dois terços do "Julgamento de Frinéia", que um dia, na adolescência, achara lúbrico.
A tais esforços deveu um início de virilidade. Mas, na mesma hora, ouviu as ameaças do marido que esbravejava no corredor:
- Eu dou um tiro nesse filho-da-puta! Hoje sai um cadáver daqui de dentro!
Valdomiro tinha a certeza de que o cadáver anunciado era o dele. Esfriou de vez. A velha tomou a iniciativa. Ameaçou gritar, chamar o perseguidor, escancarar as portas do apartamento. E, naquela mesma cama onde se sentia impotente, ele terminaria varado.
Valdomiro viu-se nu, ensangüentado na cama estranha. Não desejava encerrar seus dias de maneira cruenta e inglória.
A velha não cedia, nunca mais teria tamanha oportunidade. Foi então que Valdomiro, todo grandalhão e desajeitado, para não sair cadáver daquela cama, cumpriu mal e porcamente o seu dever. No dia seguinte, estava rouco, um cachecol enrolado no pescoço, chupando pastilhas de hortelã.

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