São Paulo, sexta, 16 de janeiro de 1998.



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Titanic


'Titanic', megaprodução de James Cameron que estréia hoje em São Paulo, resgata o grande cinema americano de espetáculo, eternizado em filmes como '...E o Vento Levou'


INÁCIO ARAUJO
Crítico de Cinema

"Titanic" colocava alguns desafios a seus realizadores. O primeiro, e principal, era: como contar uma história cujo final todo mundo conhece (e não é feliz)?
Os roteiristas providenciaram, para contornar o problema, a presença de uma sobrevivente, agora com 100 anos, quase 101, que narrará a viagem e fornecerá ao filme um ponto de vista.
E o ponto de vista da personagem Rose é tal que, dadas as circunstâncias, um naufrágio até que não chega a ser mau negócio para ela. Ex-milionária, foi prometida por sua mãe (uma megera) a um sujeito rico e antipático.
Rose está para se atirar do navio, quando é salva por um jovem e belo passageiro da classe C, Leonardo DiCaprio. Está armada a intriga: DiCaprio é um artista pobre, o noivo é um imbecil rico.
A partir daí, vem a segunda e decisiva esperteza do filme: após criar um romance proibido, interclasses, num espaço fechado (embora imenso, o Titanic era limitado), o filme passa a afirmar a personalidade tenaz de Rose.
Ela não se parece com uma mocinha aristocrática inglesa dos anos 20, mas com uma jovem dos anos 90: pensa, é independente, enfrenta as convenções que a infelicitam.
Com isso, o roteiro criou um elo precioso entre o espectador (e, sobretudo, a espectadora) contemporâneo para desenvolver uma trama convincente sobre sentimentos como perda, morte e catástrofe.
Ao mesmo tempo, como a história é narrada por Rose, sabemos que o final será ao menos razoavelmente feliz (ou seja, ela sobreviveu).
Com isso, James Cameron desvia o interesse da questão principal (o naufrágio) e propõe uma outra: como, no final, Rose se salvará?
O fim talvez seja, no mais, o aspecto frágil do filme, já que o desfecho é um tanto rocambolesco, com lances de folhetim um tanto barato.
Envolvido por eles, o espectador termina vivenciando o naufrágio do navio como um superespetáculo, não como uma supertragédia (e isso apesar da reconstituição exemplar -talvez tenha sido essa a intenção dos realizadores queriam: que não víssemos a história do Titanic como tragédia).
Será justo, no entanto, que o espectador releve esse problema, graças à argúcia com que Cameron maneja, quase secretamente, outro dado da viagem inaugural (e final) do Titanic.
Um navio é algo que propõe uma sólida divisão de classes. Os oficiais comandam, os subordinados obedecem. Os ricos podem passear livremente pela 3ª classe; os pobres ficam confinados em seus espaços. Na hora do naufrágio, quem vai para os botes são os ricos; os pobres ficam enjaulados, à espera da sua vez, se houver lugar.
A semelhança com o mundo atual é clara. Um dos assuntos de Cameron neste filme é a luta de classes, ou antes, a sua ausência neste fim de século.
O amor interclasses, primeiro, e depois a preferência dada aos ricos na hora do naufrágio são eloquentes a esse respeito.
Porém, a intuição parece ter ajudado o filme e feito coincidir seu lançamento com o crash das bolsas de valores, tornando-o uma metáfora do universo econômico.
Lá estão uma aristocracia que se julga tão insubmersível quanto o Titanic (não por acaso, será lembrado que um dos sobreviventes se suicidou durante a crise de 1929). Lá está o Titanic, singrando os mares com despreocupada arrogância, até que um reles iceberg trata de arrebentá-lo (aqui, uma metáfora recorrente: o naufrágio como castigo pela soberba. Só que Cameron laiciza a idéia de castigo divino; aqui, quem se vinga do homem é a natureza).
E, na hora da tragédia, lá estão os pobres, quase todos alijados dos botes e jogados ao mar.
De certo modo, faz sentido comparar "Titanic" com "...E o Vento Levou", o grande sucesso dos anos 30, comparação que faz parte do marketing da distribuidora. "...E o Vento Levou" também nos levava a outra grande catástrofe (o "crack" de 29 e a Depressão), falando das privações do Sul dos EUA, após a derrota na Guerra de Secessão.
Também em "...E o Vento Levou" a heroína era mulher e forte. Mas sua ambição maior era a preservação da família e da sua propriedade em meio ao vendaval.
Rose, ao contrário, quer é ver as amarras familiares arrebentadas, em nome de aspirações vitais: basta-lhe sobreviver. O dinheiro não é um valor para ela, e sim a vida.
Nesse sentido, o filme de Cameron satisfaz plenamente às aspirações do público deste fim de século conturbado.
Em outro sentido, o do espetáculo, sem comentários: é um exemplo do que o cinema americano sabe fazer quando não é mero arremedo de cinema americano.

Filme: Titanic Produção: EUA, 1997 Direção: James Cameron Com: Leonardo DiCaprio, Kate Winslet Quando: a partir de hoje, nos cines Olido 3, Estação Lumière 2, Top Cine 2 e circuito


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