São Paulo, Sábado, 16 de Janeiro de 1999
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Caudilhos da América

SYLVIA COLOMBO
Editora-adjunta interina da Ilustrada

O mundo assistirá, a partir de segunda-feira, nova audiência sobre o processo de extradição do ex-ditador chileno Augusto Pinochet pela Câmara dos Lordes da Inglaterra. Segundo dados oficiais, no regime militar liderado pelo general (1973-1990), morreram ou desapareceram mais de 3.000 pessoas. Essa é a história do Chile, que a América Latina conhece bem, nas suas diferentes matizes locais. Realidade essa em constante conexão com a produção literária da região, como mostra "Konfidenz", recente romance do também chileno Ariel Dorfman, que será lançado no Brasil e aborda as sequelas que os regimes ditatoriais deixam na sociedade. Em artigo publicado nesta edição, a professora de História da América Latina da USP Maria Lígia Coelho Prado comenta como os escritores construíram o arquétipo de seus caudilhos

da Redação

Para os personagens de Ariel Dorfman, nascer é o mesmo que tomar consciência. Ele próprio, no autobiográfico "Uma Vida em Trânsito" (Objetiva), relata seus "dois nascimentos", que teriam acontecido nas duas vezes em que o escritor chileno se confrontou com sua nacionalidade.
Leo, protagonista de "Konfidenz", seu novo livro, "nasce" no momento em que sonha com Susana, uma mulher imaginária, enquanto ele ainda é um menino. Sua imagem o acompanha por 25 anos até que se materializa em Bárbara, a noiva de um refugiado alemão que ele, como membro de um movimento de resistência ao nazismo, deve proteger em Paris.
O livro é sobre a ditadura. Não a de Pinochet nem a de Stroessner, e o cenário não é a América Latina, eleita como a principal preocupação de Dorfman como escritor.
Dessa vez, o autor transfere sua narrativa para o regime nazista de Hitler, às vésperas da Segunda Guerra. "Quero mostrar o que todas as ditaduras têm em comum, não em sua formação, e sim no que transforma a vida dos indivíduos. Quero mostrar a ditadura em cada um que a vive, ou viveu."
"Konfidenz" foi lançado inicialmente em Buenos Aires, Argentina (1994), e está saindo neste semestre no Brasil, pela Record. Além de "Konfidenz", será lançado no país "Avareza", pela Objetiva, na série "Plenos Pecados". Dorfman trabalha no segundo volume de sua autobiografia e falou à Folha sobre ditadura e literatura. (SC)

Folha - A figura do ditador está muito presente na literatura latino-americana. O senhor pensa que esta produção tem importância maior como instrumento de conscientização política ou como legado cultural?
Ariel Dorfman - Os livros de escritores como Roa Bastos, García Márquez, Alejo Carpentier e Miguel Angel Asturias (veja os títulos à pág.5-3) referem-se a um tipo muito específico de ditador. Este se relaciona com a idéia política de modernização à luz do liberalismo, com a necessidade de inserção da América Latina na aldeia global, um anseio da classe dominante. Mas todos eles partem de um pressuposto único que é o de exagerar a imagem do caudilho, um símbolo cultural forte na América Hispânica.
A maioria dos romances que tratam do tema da ditadura extravasa a linguagem literária, mas não no sentido de serem um modificador político direto. Não servem como instrumento conscientizador político, mas o legado cultural acaba sendo político.
Folha - Por quê?
Dorfman - Porque coloca os temas políticos em discussão. A compreensão e a discussão serve para libertar as pessoas do poder da ditadura.
Folha - Em que livros, na sua opinião, o ditador latino-americano está melhor retratado?
Dorfman - Nenhum dos retratos feitos na literatura é fiel porque todos tratam de um arquétipo. Acho que os romances que trataram do tema foram capazes de tomar algo que parece normal e exagerá-lo, mostrando o absurdo numa situação que é tomada como normal. Os ditadores surgem de um vazio político, e a literatura pode ajudar a mostrar como isso acontece.
Folha - O que estes ditadores têm em comum com Pinochet?
Dorfman - Pinochet tem vários pontos em comum com o arquétipo do ditador tradicional da América Latina, é integrista, católico e, por outro lado, adotou uma política ultraliberal. Acho que ele se parece com o coronel Aureliano Buendía, de "Cem Anos de Solidão", de Garcia Marquez, no seu narcisismo e no seu machismo. Mas não há nenhum livro de ensaios ou romance que tente compreendê-lo como uma figura política, toda a reflexão, hoje, quer entender Pinochet como pessoa.
Folha - Há relação entre o arquétipo tomado por esses escritores e o contraste entre civilização e barbárie proposto pelo escritor argentino Domingo Sarmiento em "Facundo" (1845)?
Dorfman - Sim, uma relação profunda, o debate sobre a identidade latino-americana passa por essa questão (civilização e barbárie) que foi levantada no século 19, à luz do liberalismo, não só na literatura. Para citar um exemplo brasileiro (um pouco posterior), poderíamos falar de "Os Sertões", de Euclides da Cunha (1902).
Folha - Como o senhor, um escritor preocupado com os caminhos políticos da América Latina, se vê neste contexto literário?
Dorfman - Quero mostrar como uma época contamina uma sociedade, como os tentáculos de um regime chegam a um grupo de pessoas e são reproduzidos, interpretados. Meus livros tratam da ditadura que existe em cada um de nós.
Folha - "Konfidenz", assim como "Viudas" (1981) -que aborda o machismo entre os militares- também traz para um pequeno universo social uma questão provocada por um sistema político. Como o sr. tratou a relação entre público e privado neste livro?
Dorfman - O debate em "Konfidenz" gira em torno do que é legítimo nos comportamentos de pessoas que vivem numa ditadura. Os opressores e os oprimidos passam a utilizar armas parecidas. O diálogo entre os personagens tenta realçar as ambiguidades.
Folha - Em que o senhor está trabalhando?
Dorfman - Estou escrevendo uma segunda parte de "Uma Vida em Trânsito", em que falo do meu retorno ao Chile. Aqui deve entrar algumas reflexões sobre o que está acontecendo com Pinochet.


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