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Caudilhos da América
SYLVIA COLOMBO
Editora-adjunta interina da Ilustrada
O mundo assistirá, a partir de segunda-feira, nova
audiência sobre o processo de extradição do ex-ditador chileno Augusto Pinochet pela Câmara dos Lordes da Inglaterra. Segundo dados oficiais, no regime
militar liderado pelo general (1973-1990), morreram
ou desapareceram mais de 3.000 pessoas. Essa é a história do Chile, que a América Latina conhece bem,
nas suas diferentes matizes locais. Realidade essa em
constante conexão com a produção literária da região, como mostra "Konfidenz", recente romance do
também chileno Ariel Dorfman, que será lançado no
Brasil e aborda as sequelas que os regimes ditatoriais
deixam na sociedade. Em artigo publicado nesta edição, a professora de História da América Latina da
USP Maria Lígia Coelho Prado comenta como os escritores construíram o arquétipo de seus caudilhos
da Redação
Para os personagens de Ariel
Dorfman, nascer é o mesmo que
tomar consciência. Ele próprio, no
autobiográfico "Uma Vida em
Trânsito" (Objetiva), relata seus
"dois nascimentos", que teriam
acontecido nas duas vezes em que
o escritor chileno se confrontou
com sua nacionalidade.
Leo, protagonista de "Konfidenz", seu novo livro, "nasce" no
momento em que sonha com Susana, uma mulher imaginária, enquanto ele ainda é um menino. Sua
imagem o acompanha por 25 anos
até que se materializa em Bárbara,
a noiva de um refugiado alemão
que ele, como membro de um movimento de resistência ao nazismo,
deve proteger em Paris.
O livro é sobre a ditadura. Não a
de Pinochet nem a de Stroessner, e
o cenário não é a América Latina,
eleita como a principal preocupação de Dorfman como escritor.
Dessa vez, o autor transfere sua
narrativa para o regime nazista de
Hitler, às vésperas da Segunda
Guerra. "Quero mostrar o que todas as ditaduras têm em comum,
não em sua formação, e sim no que
transforma a vida dos indivíduos.
Quero mostrar a ditadura em cada
um que a vive, ou viveu."
"Konfidenz" foi lançado inicialmente em Buenos Aires, Argentina
(1994), e está saindo neste semestre no Brasil, pela Record. Além de
"Konfidenz", será lançado no país
"Avareza", pela Objetiva, na série
"Plenos Pecados". Dorfman trabalha no segundo volume de sua autobiografia e falou à Folha sobre
ditadura e literatura. (SC)
Folha - A figura do ditador está
muito presente na literatura latino-americana. O senhor pensa que
esta produção tem importância
maior como instrumento de conscientização política ou como legado cultural?
Ariel Dorfman - Os livros de escritores como Roa Bastos, García
Márquez, Alejo Carpentier e Miguel Angel Asturias (veja os títulos
à pág.5-3) referem-se a um tipo
muito específico de ditador. Este
se relaciona com a idéia política de
modernização à luz do liberalismo, com a necessidade de inserção
da América Latina na aldeia global,
um anseio da classe dominante.
Mas todos eles partem de um pressuposto único que é o de exagerar a
imagem do caudilho, um símbolo
cultural forte na América Hispânica.
A maioria dos romances que tratam do tema da ditadura extravasa
a linguagem literária, mas não no
sentido de serem um modificador
político direto. Não servem como
instrumento conscientizador político, mas o legado cultural acaba
sendo político.
Folha - Por quê?
Dorfman - Porque coloca os temas políticos em discussão. A
compreensão e a discussão serve
para libertar as pessoas do poder
da ditadura.
Folha - Em que livros, na sua opinião, o ditador latino-americano
está melhor retratado?
Dorfman - Nenhum dos retratos
feitos na literatura é fiel porque todos tratam de um arquétipo. Acho
que os romances que trataram do
tema foram capazes de tomar algo
que parece normal e exagerá-lo,
mostrando o absurdo numa situação que é tomada como normal.
Os ditadores surgem de um vazio
político, e a literatura pode ajudar
a mostrar como isso acontece.
Folha - O que estes ditadores têm
em comum com Pinochet?
Dorfman - Pinochet tem vários
pontos em comum com o arquétipo do ditador tradicional da América Latina, é integrista, católico e,
por outro lado, adotou uma política ultraliberal. Acho que ele se parece com o coronel Aureliano
Buendía, de "Cem Anos de Solidão", de Garcia Marquez, no seu
narcisismo e no seu machismo.
Mas não há nenhum livro de ensaios ou romance que tente compreendê-lo como uma figura política, toda a reflexão, hoje, quer entender Pinochet como pessoa.
Folha - Há relação entre o arquétipo tomado por esses escritores e
o contraste entre civilização e barbárie proposto pelo escritor argentino Domingo Sarmiento em "Facundo" (1845)?
Dorfman - Sim, uma relação profunda, o debate sobre a identidade
latino-americana passa por essa
questão (civilização e barbárie)
que foi levantada no século 19, à
luz do liberalismo, não só na literatura. Para citar um exemplo brasileiro (um pouco posterior), poderíamos falar de "Os Sertões", de
Euclides da Cunha (1902).
Folha - Como o senhor, um escritor preocupado com os caminhos
políticos da América Latina, se vê
neste contexto literário?
Dorfman - Quero mostrar como
uma época contamina uma sociedade, como os tentáculos de um
regime chegam a um grupo de pessoas e são reproduzidos, interpretados. Meus livros tratam da ditadura que existe em cada um de nós.
Folha - "Konfidenz", assim como
"Viudas" (1981) -que aborda o
machismo entre os militares-
também traz para um pequeno
universo social uma questão provocada por um sistema político.
Como o sr. tratou a relação entre
público e privado neste livro?
Dorfman - O debate em "Konfidenz" gira em torno do que é legítimo nos comportamentos de pessoas que vivem numa ditadura. Os
opressores e os oprimidos passam
a utilizar armas parecidas. O diálogo entre os personagens tenta realçar as ambiguidades.
Folha - Em que o senhor está trabalhando?
Dorfman - Estou escrevendo uma
segunda parte de "Uma Vida em
Trânsito", em que falo do meu retorno ao Chile. Aqui deve entrar
algumas reflexões sobre o que está
acontecendo com Pinochet.
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