São Paulo, Sábado, 16 de Janeiro de 1999
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

CAUDILHOS DA AMÉRICA
Literatura viabiliza denúncia política

MARIA LÍGIA COELHO PRADO
especial para a Folha

Os recentes acontecimentos envolvendo Augusto Pinochet parecem ficção. Seria um excelente final para romances latino-americanos que têm ditadores ou ditaduras como tema central.
A política tem sido parte obrigatória da produção literária da América Latina. Como já afirmou a crítica norte-americana Jean Franco, nossos escritores mantêm uma preocupação política permanente, movidos por forte sentimento de responsabilidade social, que os faz produzir contundentes textos de denúncia.
"Amalia" (1851), do argentino José Mármol, é considerado o primeiro de uma longa e extraordinária série de romances que fazem a crítica dos regimes autoritários na América Latina. Mármol conta uma trágica história de amor destruída pela arbitrariedade do governo de Juan Manuel de Rosas.
No século 20, referência obrigatória é o livro do guatemalteco exilado Miguel Angel Asturias, prêmio Nobel de Literatura que, em "O Senhor Presidente" (1946), produz um dos mais violentos libelos contra a ditadura latino-americana, criando um ditador que destrói os que lhe interceptam.
O próprio Pinochet inspirou um personagem literário, o Mordomo, do romance de José Donoso, "Casa de Campo" (1978). O livro é uma metáfora do Chile pós-1973. A história se passa num país chamado Marulanda, onde vive a família Ventura, que passa os verões em sua casa de campo. Ali, os nativos extraem o ouro, que eles vendem aos estrangeiros.
A família tem problemas com um de seus membros, Gomara, que pretende fazer mudanças na situação. Para pôr ordem na casa chama-se o Mordomo.
Para Donoso, os Ventura representam a burguesia vinculada aos interesses internacionais, Gomara assemelha-se a Allende e o Mordomo é inspirado em Pinochet.
As ambíguas relações de identidade com a Europa vivenciadas por outro ditador (desta vez imaginário) estão pintadas com maestria pelo cubano Alejo Carpentier, em "O Recurso do Método" (1974). A personagem central, o Primeiro Magistrado, é o ditador de um fictício país caribenho, no começo do século. Carpentier assume que se inspirou em vários ditadores -o cubano Gerardo Machado, o guatemalteco Estrada Cabrera, o mexicano Porfirio Diaz- para compor o Primeiro Magistrado.
O personagem venera o refinamento da cultura européia. Mas se esquece dela quando necessita exercitar "sua mão de ferro", perseguindo e reprimindo com extremada violência seus inimigos políticos. Acaba deposto e deverá terminar seus dias exilado em Paris.
Carpentier trabalha os complexos sentimentos de identidade vivenciados pelo Primeiro Magistrado, dividido entre o encanto platônico pela "racionalidade civilizada" da França e a falta que sente das comidas e cheiros do Caribe. No cemitério de Montparnasse, passa pelos túmulos de Maupassant e Baudelaire e dirigi-se respeitosamente ao de Porfirio Diaz.
García Márquez também retrata a morte de um velho e solitário ditador em "O Outono do Patriarca" (1974). No final do romance, o ditador percebe que havia chegado "à ignomínia de mandar sem poder, de ser exaltado sem glória e de ser obedecido sem autoridade".
Conclui que havia compensado seu "destino infame" com o "culto abrasador do vício solitário do poder", terminando como seu prisioneiro, sem possibilidade de escapar. Como em "O Outono", Pinochet acabou por se transformar em peça de uma engrenagem sobre a qual não tem mais controle. Lidando com os fantasmas do passado, o ex-ditador chileno está obrigado a se submeter à Justiça européia.
O balanço da vida de outro "homem forte" está retratado por Augusto Roa Bastos, em "Eu, o Supremo" (1974), que conta a vida de José Gaspar de Francia, ditador do Paraguai, entre 1814 e 1840. O livro toma a forma de diário do próprio Francia. Roa Bastos também transcreve documentos e incorpora vozes de outros narradores, incluindo o compilador do material.
E é este compilador que, ao final, morto o ditador, resume o que deve permanecer na memória dos leitores, exprimindo o juízo para a posteridade sobre o regime de Francia. Que Pinochet o possa ouvir: "Estás igualmente condenado. Para ti não há resgate possível. Os outros serão comidos pelo esquecimento. Tu, ex-Supremo, és quem deve dar conta de tudo e pagar até o último quadrante..."
Maria Lígia Coelho Prado é professora de História da América Latina do Departamento de História da USP


Texto Anterior: Stroessner leva ao exílio
Próximo Texto: Da Rua - Fernando Bonassi: Tem suingue
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Agência Folha.