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CAUDILHOS DA AMÉRICA
Literatura viabiliza denúncia política
MARIA LÍGIA COELHO PRADO
especial para a Folha
Os recentes acontecimentos envolvendo Augusto Pinochet parecem ficção. Seria um excelente final para romances latino-americanos que têm ditadores ou ditaduras como tema central.
A política tem sido parte obrigatória da produção literária da
América Latina. Como já afirmou
a crítica norte-americana Jean
Franco, nossos escritores mantêm
uma preocupação política permanente, movidos por forte sentimento de responsabilidade social,
que os faz produzir contundentes
textos de denúncia.
"Amalia" (1851), do argentino
José Mármol, é considerado o primeiro de uma longa e extraordinária série de romances que fazem a
crítica dos regimes autoritários na
América Latina. Mármol conta
uma trágica história de amor destruída pela arbitrariedade do governo de Juan Manuel de Rosas.
No século 20, referência obrigatória é o livro do guatemalteco exilado Miguel Angel Asturias, prêmio Nobel de Literatura que, em
"O Senhor Presidente" (1946), produz um dos mais violentos libelos
contra a ditadura latino-americana, criando um ditador que destrói
os que lhe interceptam.
O próprio Pinochet inspirou um
personagem literário, o Mordomo,
do romance de José Donoso, "Casa
de Campo" (1978). O livro é uma
metáfora do Chile pós-1973. A história se passa num país chamado
Marulanda, onde vive a família
Ventura, que passa os verões em
sua casa de campo. Ali, os nativos
extraem o ouro, que eles vendem
aos estrangeiros.
A família tem problemas com
um de seus membros, Gomara,
que pretende fazer mudanças na
situação. Para pôr ordem na casa
chama-se o Mordomo.
Para Donoso, os Ventura representam a burguesia vinculada aos
interesses internacionais, Gomara
assemelha-se a Allende e o Mordomo é inspirado em Pinochet.
As ambíguas relações de identidade com a Europa vivenciadas
por outro ditador (desta vez imaginário) estão pintadas com maestria pelo cubano Alejo Carpentier,
em "O Recurso do Método" (1974).
A personagem central, o Primeiro
Magistrado, é o ditador de um fictício país caribenho, no começo do
século. Carpentier assume que se
inspirou em vários ditadores -o
cubano Gerardo Machado, o guatemalteco Estrada Cabrera, o mexicano Porfirio Diaz- para compor o Primeiro Magistrado.
O personagem venera o refinamento da cultura européia. Mas se
esquece dela quando necessita
exercitar "sua mão de ferro", perseguindo e reprimindo com extremada violência seus inimigos políticos. Acaba deposto e deverá terminar seus dias exilado em Paris.
Carpentier trabalha os complexos sentimentos de identidade vivenciados pelo Primeiro Magistrado, dividido entre o encanto platônico pela "racionalidade civilizada" da França e a falta que sente
das comidas e cheiros do Caribe.
No cemitério de Montparnasse,
passa pelos túmulos de Maupassant e Baudelaire e dirigi-se respeitosamente ao de Porfirio Diaz.
García Márquez também retrata
a morte de um velho e solitário ditador em "O Outono do Patriarca"
(1974). No final do romance, o ditador percebe que havia chegado
"à ignomínia de mandar sem poder, de ser exaltado sem glória e de
ser obedecido sem autoridade".
Conclui que havia compensado
seu "destino infame" com o "culto
abrasador do vício solitário do poder", terminando como seu prisioneiro, sem possibilidade de escapar. Como em "O Outono", Pinochet acabou por se transformar em
peça de uma engrenagem sobre a
qual não tem mais controle. Lidando com os fantasmas do passado, o
ex-ditador chileno está obrigado a
se submeter à Justiça européia.
O balanço da vida de outro "homem forte" está retratado por Augusto Roa Bastos, em "Eu, o Supremo" (1974), que conta a vida de José Gaspar de Francia, ditador do
Paraguai, entre 1814 e 1840. O livro
toma a forma de diário do próprio
Francia. Roa Bastos também
transcreve documentos e incorpora vozes de outros narradores, incluindo o compilador do material.
E é este compilador que, ao final,
morto o ditador, resume o que deve permanecer na memória dos
leitores, exprimindo o juízo para a
posteridade sobre o regime de
Francia. Que Pinochet o possa ouvir: "Estás igualmente condenado.
Para ti não há resgate possível. Os
outros serão comidos pelo esquecimento. Tu, ex-Supremo, és quem
deve dar conta de tudo e pagar até
o último quadrante..."
Maria Lígia Coelho Prado é professora de História da América Latina do Departamento de
História da USP
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