São Paulo, quarta-feira, 16 de fevereiro de 2000


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ARTIGO
Enquanto isso, no Brasil...

ALAIN FRESNOT
especial para a Folha

Sábado foi entregue pela primeira vez o Grande Prêmio Cinema Brasil, no Palácio Quitandinha em Petrópolis. A iniciativa da Secretaria do Audiovisual do Ministério da Cultura propõe "celebrar" o renascimento do cinema brasileiro e transformar esse prêmio, pela sua organização e ambição, em "Oscar" do nosso cinema.
A iniciativa é importante e pode ajudar na consolidação da atividade nesse momento em que parte da imprensa se assanha contra o cinema e que os resultados da captação das leis de incentivo apontam para uma baixa da produção.
O cenário da festa não poderia ser mais apropriado. O cinema brasileiro tem tradição de Quitandinha. Vários filmes foram feitos lá no tempo já da chanchada.
Dentre muitas sequências notáveis, lembro de uma (por ter visto bem mais tarde, claro) do "Homem do Sputnik", de 1954, de Carlos Manga, salvo engano rodada lá, em que Norma Bengell faz uma imitação hilária e antológica de Brigite Bardot.
Outra função básica do prêmio é revelar à mídia os aspectos positivos de nosso trabalho e reduzir à sua real dimensão as denúncias de casos isolados de possíveis desvios de verbas de produção. Parte da imprensa, felizmente minoritária, usa os casos de Norma Bengell e de Guilherme Fontes para destilar seu ressentimento contra o cinema brasileiro
A nossa indústria do audiovisual não corresponde à importância que o Brasil tem na economia mundial. As exportações brasileiras representam algo próximo a 1% do comércio internacional. Em várias áreas, as exportações têm presença marcante, lideranças expressivas e projetos de desenvolvimento.
Em função do déficit público, as autoridades estão atentas à concorrência internacional, à capacidade de produção e à infra-estrutura.
O fato de o cinema brasileiro não corresponder em nada às outras atividades econômicas é fruto da fragilidade crônica da indústria cinematográfica no Brasil, que, como os outros cinemas nacionais, vive em constante disputa com o cinema norte-americano pelo seu mercado. Luta desigual, pois o cinema de Hollywood tem um ganho de "escala" que impõe ao resto do mundo um permanente estado de "resistência".
Hoje, no cinema brasileiro, a curva de público é ascendente, a produção está aumentando e em cinco anos já competimos a vários prêmios internacionais. Todos os indicadores são positivos.
Nos primeiros anos da década de 90 a produção era inexistente, nula. Obra do governo Collor de Mello. Em 99 houve algo como 25 filmes lançados e uma participação de 8% do mercado.
O "lobby" que ressuscitou o cinema brasileiro foi liderado pelos produtores. A reconquista foi facilitada pela importância histórica que o cinema teve no passado aliada à sensibilidade cultural dos governos Itamar Franco e Fernando Henrique Cardoso.
Essa variação da presença do cinema brasileiro nas telas é a melhor prova de que a existência de uma produção de cinema no país é consequência direta da política cultural implementada pelo governo federal. Foi com grande satisfação que li, em editorial deste jornal no último dia 2, que a Folha entendeu essa realidade.
Com o desmantelamento total dos organismos públicos do cinema, como o Concine e a Embrafilme nos anos 80, o governo perdeu os quadros, "desaprendeu" a realidade do mercado cinematográfico e seu processo de reaprendizado é muito lento.
Como pão de pobre cai com a manteiga para baixo, várias mortes prematuras vieram debilitar o nosso já frágil cinema. Quanto mais passa o tempo, mais salta aos olhos a perda que significou a morte do professor Paulo Emílio Salles Gomes. Falta hoje uma reflexão, uma avaliação do papel que o Estado vem desempenhando na produção, suas limitações e como seguir fortalecendo.
Hoje, com honrosas exceções, o despreparo da crítica é grave.
Há falta de revistas especializadas, os críticos são mal formados e mal pagos, e isso é também uma fragilidade do cinema brasileiro. Há poucos pesquisadores e estudiosos. Prevalece a crítica filme a filme e solidariedades fáceis de geração. As editorias de cultura substituíram a participação na discussão dos rumos da arte brasileira por um tacanho jornalismo "pseudo-investigativo".
Em cinco anos, recuperamos uma parcela da produção: 25 filmes/ano. É muito pouco. A França produz 140 filmes/ano, a Espanha, 80. Esse renascer se deve basicamente à Lei do Audiovisual, ao esforço e à mobilização dos produtores e de Luiz Carlos Barreto em particular.
Hoje, as leis de incentivo estão fragilizadas, precisam ser reformuladas e duas forças podem derrubar o renascimento do cinema: O Estado, se não efetivar com urgência os próximos passos necessários, ou os incomodados, se forem vitoriosos na cristalização do conceito de que a aplicação da renúncia fiscal é desnecessária culturalmente e socialmente injusta se aplicada ao cinema.
É evidente a recuperação do prestígio dos nossos filmes. O ressuscitar do cinema brasileiro é um dos feitos de que o governo pode se orgulhar, mas as circunstâncias específicas do último fim de ano e a crise geral tornam o futuro da produção incerto.
Há urgência urgentíssima do aprimoramento dos mecanismos para não involuirmos rapidamente.
O risco que corremos hoje como atividade é o mesmo que em grande parte causou a derrocada em 90, a desunião. O cinema de autor evita qualquer concessão, qualquer pretensão de chegar ao grande público com o excelente argumento de que o mercado está fechado ao filme brasileiro.
Os defensores do cinema comercial apontam o fato, incontestável, de que o filme cultural não acostuma o público ao filme brasileiro e que "queima o filme" com investidores e exibidores por não dar nenhuma real perspectiva de retorno. Fato é que os "cinemas" que compõem a atividade são as várias facetas de uma indústria e devem se reforçar mutuamente.
O mecanismo da renúncia fiscal tende a privilegiar os filmes "empreendimento". Raros são os investidores capazes de avaliar um projeto de filme em todas suas dimensões, e a obsessão em eliminar os riscos tende a "aguar" o resultado. Frequentemente esse filme fracassa, e isso vai "desimportando" culturalmente os filmes com o enfraquecimento da justificativa da existência da lei.
O aspecto cultural, a defesa da língua, a dimensão do país e a história do cinema brasileiro são motivos suficientes para se desenvolver e proteger a atividade ou o mercado dominado e selvagem é soberano? As decisões que neste ano deverão ser tomadas no cinema serão resultado direto do quanto o governo acredita na necessidade de uma força reguladora num mercado sem regras. Quanto mais, melhor fará. Quanto menos, pior.
Nos anos 60, o professor Jean-Claude Bernardet percebeu com clareza que a elite brasileira rejeitava o cinema nacional por não suportar a própria imagem, o reflexo de si mesma nas telas. Hoje, curiosamente, quer o reflexo, pois a inexistência de um cinema nacional seria a manifestação pública de nosso subdesenvolvimento.
Queremos o reflexo mas sem o espelho. Queremos a forma sem o fundo. Enquanto a existência do cinema nacional depender da auto-imagem de seus políticos dirigentes e não houver consenso na totalidade do espectro político e na sociedade civil, imprensa inclusa, como há hoje na França, nos EUA ou na Espanha de que um cinema nacional é necessidade básica da cultura do país, cineastas e produtores seremos sempre suspeitos e pedintes.


Alain Fresnot é diretor de "Lua Cheia" e "Ed Mort" e produtor "Castelo Rá-Tim-Bum" e "Através da Janela".


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