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Desfila na avenida a escola Beira do Abismo
ARNALDO JABOR
da Equipe de Articulistas
O desfile da escola de samba
Acadêmicos da Beira do Abismo foi sensacional. Seu samba-enredo, com o inesquecível refrão, fazia as elites delirarem
no Sambódromo: "Sabiá cantou/ inflação subiu/ e a banda
cambial/ foi para o céu de
anil!". Claro que a massa foliã
cantava: "... e a bunda cambial
foi para a PQP!". Um grande
"ahhh" de alívio rolava na avenida. "Olha aí, gente. É o velho
Brasil voltando!", gritava o neguinho puxador.
A escola abria com uma grande alegoria educativa da história: caravelas chegando com
variadas índias nuas, negras
nuas, branquelas nuas, degredadas, prostitutas portuguesas
em meio a uma imensa floresta
de luzente papel machê, como
uma ilha flutuante no céu, povoada de araras, tucanos, urubus, todos balançando sob um
céu pintado de anil... "Vai para
a PQP'", repetia a massa.
A parte de revisão histórica
foi um sucesso. Passaram malocas de índios, quilombos de
negros fugidos, brancos degredados em berlindas, mulheres
em cadeirinhas, portugueses
bigodudos dançando com
grandes diamantes e pepitas de
ouro no ar.
Passou um Tiradentes de
plástico pendurado na forca,
que se esquartejava em postas,
seus imensos braços e pernas
arrancados pela massa, a cabeça enorme de Tiradentes rindo
e girando aos quatro ventos,
cercada de baianas cantando:
"Foi traído e não traiu jamais...".
Passavam cavalos de asas
com muitos Pedros Primeiros
montados, de espada em punho, seguidos por travestis de
"marquesas de Santos", escravos libertos pedindo esmolas, a
grande Coroa Imperial destroçada a tiros luminosos por um
grande canhão da República,
um grande obelisco com Getúlio Vargas amarrando o cavalo, piras de café queimando no
ar, torres de petróleo, Brasília
dançando.
Por fim, veio a ala Verde-Oliva de 64, com centenas de milicos evoluindo em coreografias
guerreiras em volta de alegorias prateadas: imensos paus-de-arara com foliões torturados, pendurados de cabeça para baixo, mandando beijos para a multidão.
Na frente, um imenso pênis
dourado crescia e diminuía,
enquanto o coro cantava: "É
hoje sim/ não é hoje não/ chegou, chegou/ o fantasma da inflação". O pau da inflação balançava em cima de uma linda
dama da sociedade, de camisola dourada e com uma tocha
que jorrava purpurina, a famosa grã-fina fazendo o papel de
"Democracia", diante da carantonha de papelão de Tancredo Neves, amarelo, morto
(mas sorrindo). A sua frente,
uma bicha louca rebolava, no
destaque de "Vírus do Intestino do Presidente", prêmio de
originalidade.
Depois, flutuava na avenida
o grande bigodão do Sarney,
seguido pela alegoria de Collor
dançando com Rosane, ela vestida com suas discretas roupas
de oncinha e verde-abacate e
ele de camisa-de-força. Depois,
vinha a grande cabeça do PC
com uma bela mulata alagoana nua, rebolando em cima de
sua careca ensanguentada.
Então, a avenida fez um
imenso "ohhh!", com a revoada
de milhares de borboletas coloridas e no meio, vitoriosa, só de
camiseta e sem calcinha, Lilian
Ramos, a primeira-dama-por-uma-noite, cujos pêlos pubianos se trançavam num grande
pálio capilar que encobria um
bailarino aposentado, de terno
e faixa, que fazia o Itamar
Franco, com seu enfunado topete de purpurina.
Aí surgiu a espantosa alegoria da abundância, o mais
aclamado carro alegórico. Era
uma gigantesca bunda luminosa que "descomia" bens importados do Primeiro Mundo,
tombando em cascata diante
das bocas abertas da platéia:
celulares tocando na mão de
homens barrigudos de biquíni,
tamagochis pornográficos, bonecas "barbies" obscenas, patês
de foie gras, rubros salmões, caviar, hambúrgueres e, no centro da alegoria da abundância,
um halterofilista fortíssimo
vestido de ouro reluzente, no
papel de "Real, Esplendor da
Moeda Forte", pisando uma
montanha de dólares.
Embaixo, as três alas mais
aplaudidas da fase do Plano
Real: a ala dos Frangos, composta de centenas de veados
vestidos de frangos garnisés,
frangos carijós e frangos d'angola rebolando e cantando:
"Cococó ricó, viva o Real!".
Depois vinha a ala das Galinhas, formada por prostitutas
emergentes querendo ser peruas ricas e, por último, muito
esperada, a ala das Peruas, formada por emergentes ricas
querendo ser prostitutas, todas
com o colarzinho no pescoço
com o nome da empresa do marido.
Em seguida, uma alegoria
controversa: um imenso prédio
em plástico inflado que se erguia e caía no meio de uma nuvem de talco colorido, a ala Naya, cheia de agregados -anões
do orçamento, devedores do
Banco do Brasil, "Talvanes",
"Chapéus de Couro",
"Abraões" perdoados, corruptos em geral, seguidos por uma
multidão de excluídos, vestidos
de "sujos", agitando cestas básicas no ar, sendo logo respondidos pelos gritos e gemidos da
ala dos Desempregados, que já
ocupava 7% da avenida.
No centro, a alegoria presidencial: cercado de governadores sabotadores sambando no
pé, fracassomaníacos da fuzarca, atravessando uma grande
multidão rodopiante de "Lulas", que jogavam cascas de banana em seu caminho, passava
a grande alegoria de FHC esculpida como um boneco joão-teimoso, que balançava, hesitante, temeroso, sorrindo para
frente e pra trás.
Por fim, chegava o triunfal
destaque do Primeiro Mundo:
uma grande roleta do cassino
global girando com mulheres
de vermelho e negro, seminuas,
e um crupiê com chapéu de Tio
Sam sapateando.
Súbito, um apito e um breque. Surge a grande boca vermelha de Monica Lewinsky,
abrindo e fechando; de dentro
dela, pula o boneco Clinton, como um polichinelo-de-mola. A
batida da escola fica funk, justamente quando entram centenas de passistas de terno e gravata, pastinha 007, num genial
uníssono de sapateado, com o
Neguinho da Beija-Flor gritando: "Olha o FMI aí, gente!!".
Uma gangorra oscila no ar,
com as Bolsas e o dólar flutuante e dezenas de homens de
casaca e cartola rolando pra cima e pra baixo. O desfile se acelera com a ala dos Catastrofistas em Festa, a ala dos Albaneses, com cartazes de "quanto
pior melhor", a ala dos Economistas Vingados, a ala do MR-8, ou melhor, do MROQ (Movimento Revolucionário Orestes
Quércia), com faixas de "eu
não disse?", a ala dos Acadêmicos Vingativos da USP, a ala
dos Ministros Rebaixados e,
por último, um batalhão de
crioulos com maquininhas de
remarcar preços no ritmo do
samba: "Clic, clic, clic...".
O povo delirava com a escola.
Era a vitória surgindo! O desfile ia chegar ao seu clímax: a
alegoria da Solução. Era o carro mais esperado. A avenida
inteira se ergue com um
"ohhh" de fascínio, à vista da
apoteose.
Ao longe, já se via a Solução,
o imenso ponto de interrogação que se abriria na avenida
com sua épica revoada de urubus-jerebas.
Mas, súbito, ouviu-se um estouro, seguido de chamas. O
carro da Solução explode e encalha na beira da passarela. A
multidão ainda tenta salvá-lo,
mas a polícia baixa o pau. E o
alto-falante avisa: "Senhoras e
senhores, não teremos mais Solução!". E foi assim que a escola
de samba Acadêmicos da Beira
do Abismo caiu para a segunda
divisão, para sempre.
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