São Paulo, Terça-feira, 16 de Fevereiro de 1999
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Desfila na avenida a escola Beira do Abismo

ARNALDO JABOR
da Equipe de Articulistas
O desfile da escola de samba Acadêmicos da Beira do Abismo foi sensacional. Seu samba-enredo, com o inesquecível refrão, fazia as elites delirarem no Sambódromo: "Sabiá cantou/ inflação subiu/ e a banda cambial/ foi para o céu de anil!". Claro que a massa foliã cantava: "... e a bunda cambial foi para a PQP!". Um grande "ahhh" de alívio rolava na avenida. "Olha aí, gente. É o velho Brasil voltando!", gritava o neguinho puxador.
A escola abria com uma grande alegoria educativa da história: caravelas chegando com variadas índias nuas, negras nuas, branquelas nuas, degredadas, prostitutas portuguesas em meio a uma imensa floresta de luzente papel machê, como uma ilha flutuante no céu, povoada de araras, tucanos, urubus, todos balançando sob um céu pintado de anil... "Vai para a PQP'", repetia a massa.
A parte de revisão histórica foi um sucesso. Passaram malocas de índios, quilombos de negros fugidos, brancos degredados em berlindas, mulheres em cadeirinhas, portugueses bigodudos dançando com grandes diamantes e pepitas de ouro no ar.
Passou um Tiradentes de plástico pendurado na forca, que se esquartejava em postas, seus imensos braços e pernas arrancados pela massa, a cabeça enorme de Tiradentes rindo e girando aos quatro ventos, cercada de baianas cantando: "Foi traído e não traiu jamais...".
Passavam cavalos de asas com muitos Pedros Primeiros montados, de espada em punho, seguidos por travestis de "marquesas de Santos", escravos libertos pedindo esmolas, a grande Coroa Imperial destroçada a tiros luminosos por um grande canhão da República, um grande obelisco com Getúlio Vargas amarrando o cavalo, piras de café queimando no ar, torres de petróleo, Brasília dançando.
Por fim, veio a ala Verde-Oliva de 64, com centenas de milicos evoluindo em coreografias guerreiras em volta de alegorias prateadas: imensos paus-de-arara com foliões torturados, pendurados de cabeça para baixo, mandando beijos para a multidão.
Na frente, um imenso pênis dourado crescia e diminuía, enquanto o coro cantava: "É hoje sim/ não é hoje não/ chegou, chegou/ o fantasma da inflação". O pau da inflação balançava em cima de uma linda dama da sociedade, de camisola dourada e com uma tocha que jorrava purpurina, a famosa grã-fina fazendo o papel de "Democracia", diante da carantonha de papelão de Tancredo Neves, amarelo, morto (mas sorrindo). A sua frente, uma bicha louca rebolava, no destaque de "Vírus do Intestino do Presidente", prêmio de originalidade.
Depois, flutuava na avenida o grande bigodão do Sarney, seguido pela alegoria de Collor dançando com Rosane, ela vestida com suas discretas roupas de oncinha e verde-abacate e ele de camisa-de-força. Depois, vinha a grande cabeça do PC com uma bela mulata alagoana nua, rebolando em cima de sua careca ensanguentada.
Então, a avenida fez um imenso "ohhh!", com a revoada de milhares de borboletas coloridas e no meio, vitoriosa, só de camiseta e sem calcinha, Lilian Ramos, a primeira-dama-por-uma-noite, cujos pêlos pubianos se trançavam num grande pálio capilar que encobria um bailarino aposentado, de terno e faixa, que fazia o Itamar Franco, com seu enfunado topete de purpurina.
Aí surgiu a espantosa alegoria da abundância, o mais aclamado carro alegórico. Era uma gigantesca bunda luminosa que "descomia" bens importados do Primeiro Mundo, tombando em cascata diante das bocas abertas da platéia: celulares tocando na mão de homens barrigudos de biquíni, tamagochis pornográficos, bonecas "barbies" obscenas, patês de foie gras, rubros salmões, caviar, hambúrgueres e, no centro da alegoria da abundância, um halterofilista fortíssimo vestido de ouro reluzente, no papel de "Real, Esplendor da Moeda Forte", pisando uma montanha de dólares.
Embaixo, as três alas mais aplaudidas da fase do Plano Real: a ala dos Frangos, composta de centenas de veados vestidos de frangos garnisés, frangos carijós e frangos d'angola rebolando e cantando: "Cococó ricó, viva o Real!".
Depois vinha a ala das Galinhas, formada por prostitutas emergentes querendo ser peruas ricas e, por último, muito esperada, a ala das Peruas, formada por emergentes ricas querendo ser prostitutas, todas com o colarzinho no pescoço com o nome da empresa do marido.
Em seguida, uma alegoria controversa: um imenso prédio em plástico inflado que se erguia e caía no meio de uma nuvem de talco colorido, a ala Naya, cheia de agregados -anões do orçamento, devedores do Banco do Brasil, "Talvanes", "Chapéus de Couro", "Abraões" perdoados, corruptos em geral, seguidos por uma multidão de excluídos, vestidos de "sujos", agitando cestas básicas no ar, sendo logo respondidos pelos gritos e gemidos da ala dos Desempregados, que já ocupava 7% da avenida.
No centro, a alegoria presidencial: cercado de governadores sabotadores sambando no pé, fracassomaníacos da fuzarca, atravessando uma grande multidão rodopiante de "Lulas", que jogavam cascas de banana em seu caminho, passava a grande alegoria de FHC esculpida como um boneco joão-teimoso, que balançava, hesitante, temeroso, sorrindo para frente e pra trás.
Por fim, chegava o triunfal destaque do Primeiro Mundo: uma grande roleta do cassino global girando com mulheres de vermelho e negro, seminuas, e um crupiê com chapéu de Tio Sam sapateando.
Súbito, um apito e um breque. Surge a grande boca vermelha de Monica Lewinsky, abrindo e fechando; de dentro dela, pula o boneco Clinton, como um polichinelo-de-mola. A batida da escola fica funk, justamente quando entram centenas de passistas de terno e gravata, pastinha 007, num genial uníssono de sapateado, com o Neguinho da Beija-Flor gritando: "Olha o FMI aí, gente!!".
Uma gangorra oscila no ar, com as Bolsas e o dólar flutuante e dezenas de homens de casaca e cartola rolando pra cima e pra baixo. O desfile se acelera com a ala dos Catastrofistas em Festa, a ala dos Albaneses, com cartazes de "quanto pior melhor", a ala dos Economistas Vingados, a ala do MR-8, ou melhor, do MROQ (Movimento Revolucionário Orestes Quércia), com faixas de "eu não disse?", a ala dos Acadêmicos Vingativos da USP, a ala dos Ministros Rebaixados e, por último, um batalhão de crioulos com maquininhas de remarcar preços no ritmo do samba: "Clic, clic, clic...".
O povo delirava com a escola. Era a vitória surgindo! O desfile ia chegar ao seu clímax: a alegoria da Solução. Era o carro mais esperado. A avenida inteira se ergue com um "ohhh" de fascínio, à vista da apoteose.
Ao longe, já se via a Solução, o imenso ponto de interrogação que se abriria na avenida com sua épica revoada de urubus-jerebas.
Mas, súbito, ouviu-se um estouro, seguido de chamas. O carro da Solução explode e encalha na beira da passarela. A multidão ainda tenta salvá-lo, mas a polícia baixa o pau. E o alto-falante avisa: "Senhoras e senhores, não teremos mais Solução!". E foi assim que a escola de samba Acadêmicos da Beira do Abismo caiu para a segunda divisão, para sempre.


Texto Anterior: O olhar do poeta
Próximo Texto: "Pierrot" traduz melhor a modernidade de Schoenberg
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Agência Folha.