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DISCO LANÇAMENTOS
"Pierrot" traduz melhor a modernidade de Schoenberg
ARTHUR NESTROVSKI
especial para a Folha
"Minha música não é moderna; é
só mal tocada", costumava dizer
Schoenberg (1874-1951). A frase é
memorável, mas não inteiramente
justa. Que sua música era mal tocada ninguém duvida. Mas nenhuma
outra, mais do que ela, define a
modernidade nesse século.
Toda uma estética e toda uma lógica da música são subvertidas ou
reinventadas por Schoenberg,
num pequeno número de obras
definitivas, como o quarteto de
cordas nº 2 (1908), as primeiras peças atonais para piano, op. 11, as
"Cinco Peças" para orquestra, ou a
ópera de câmara "Erwartung" (todas de 1909). Nessas composições,
inaugura-se uma outra forma de
imaginar a música, para além do
princípio da tonalidade.
Escrevendo a um amigo, em
1912, Schoenberg dizia estar "a caminho de uma nova forma de expressão". Uma definição rápida
dessa nova forma seria "expressionismo" -mas seria uma definição
rápida demais.
Expressionismo e ironia, teatro e
música abstrata, arte pura e cabaré, palavra e canto: tudo isso se
mistura, com um toque de orientalismo e grandes doses de ambivalência, em "Pierrot Lunaire", "três
vezes sete poemas de Albert Giraud", para soprano e um conjunto de cinco instrumentos.
Estreada naquele ano, a suíte de
canções está para a música de câmara da nossa época como "A Sagração da Primavera", de Stravinski (1913), para o repertório orquestral.
Referência incontornável, mas
nem por isso muito escutada,
"Pierrot" recebe agora uma nova e
linda gravação, com a soprano
Christine Schäfer à frente do Ensemble InterContemporain regido
por Pierre Boulez (Deutsche
Grammophon).
Já virou clichê falar da "emancipação da dissonância", associada
ao dodecafonismo de Schoenberg.
Mas a dissonância é muitas vezes
mal compreendida. A dissonância
é precisamente o que faz a música
qualquer música, tonal ou atonal ir
para frente. Sem tensão, a música
não sai do lugar. E o desafio de
Schoenberg, ao compor uma música que não segue mais o sistema
de tensões e resoluções da tonalidade, era imaginar outras formas
de cadência.
No caso de "Pierrot Lunaire",
que é exemplar das soluções encontradas por essa nova música, o
sentido musical não depende prioritariamente da harmonia, mas
sim das alterações de timbre, ritmo, textura e contorno das linhas.
Isso é tão verdade dos instrumentos quanto da famosíssima
partitura vocal, escrita menos para
ser cantada do que declamada,
num misto de canto e fala que o
compositor batizou de "Sprechstimme" ("cantofala").
A idéia não é completamente nova; já fora empregada pelo próprio
Schoenberg em composições como a pequena "Herzgewächse", de
1911, para voz, celesta, harmônio e
harpa (também incluída no disco)
e remonta a toda uma tradição de
cruzamentos entre música e texto
recitado, que tem Schubert ou
Liszt de um lado e as canções de cabaré alemão de outro.
Mas no op. 21 a liberdade relativa
da linha da voz ganha conotações
revolucionárias, no contexto atonal.
Faz mais de 30 anos que Pierre
Boulez gravou "Pierrot Lunaire"
pela primeira vez, com a soprano
Helga Pylarczik. Num artigo da
época ("Dire, jouer, chanter",
1963), ele descrevia a dificuldade
de executar essa "arte de contrastes", em que um lirismo levemente
irônico se alterna com a histeria e
uma sentimentalidade desiludida.
Boulez chamava a atenção para as
ambiguidades afetivas da música e
sublinhava a necessidade de se
afastar de uma suposta angústia
expressionista, tida como padrão.
Mas só agora, com o benefício de
mais uma geração inteira de distância, ele encontra uma cantora à
altura de suas intenções.
Christine Schäfer soa especialmente à vontade nesses prazeres
difíceis da música de Schoenberg.
"A cor acima de tudo!", pedia o
compositor, e a intensidade de cada nota ganha com ela um sentido
expressivo primário.
Entre a fala e o canto, ironicamente suspensa entre o "lied" e a
canção de cabaré, Schäfer é a cantora lunar por excelência, acompanhada por cinco gênios da delicadeza e do estranhamento.
Tanto contraste e tanta arte não
se pode esperar do barítono David
Pittman-Jennings, que recita o
poema de Byron musicado por
Schoenberg na "Ode to Napoleon
Buonaparte", para quarteto de
cordas, piano e voz.
Escrita 30 anos depois do "Pierrot", já no exílio americano do
compositor, a "Ode" trata a voz
com mais desenvoltura ainda, sem
as graças do estilo quase paródico
de 1912.
Mas a seriedade de propósito
dessa peça composta em plena
guerra, impede, até certo ponto, a
fantasia inexplicável e incomparável do "Pierrot".
"A inteligência tem um dever
moral de lutar contra a tirania", escreveu Schoenberg. Ainda não
nasceu um compositor com maior
retidão moral do que ele; mas nem
sempre a expressão política aberta
é a via da genialidade, nem mesmo
quando é a via da humanidade.
A "Ode" não deixou descendentes, mas a influência de "Pierrot
Lunaire" pode ser traçada em um
grande número de obras modernas, desde a "História do Soldado", de Stravinski, as "Chansons
Madécasses", de Ravel, e as canções de Webern até, muito especialmente, o ciclo "Le Marteau
sans Maitre", do próprio Pierre
Boulez.
A história dessas peças foi tornando cada vez mais compreensível a arte de Schoenberg. Mas compreensão e sentimento, na música,
são uma coisa só; e essa nova gravação de "Pierrot Lunaire" torna
possível, melhor do que nunca,
compreender aquela nova forma
de expressão inventada por
Schoenberg, que é o que se conhece até hoje por modernidade.
Disco: Pierrot Lunaire. Herzgewächse. Ode
to Napoleon
Compositor: Arnold Schoenberg
Soprano: Christine Schäfer
Orquestra: Ensemble InterContemporain
Regente: Pierre Boulez
Lançamento: Deutsche Grammophon
Quanto: R$ 20, em média
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