São Paulo, Terça-feira, 16 de Fevereiro de 1999
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DISCO LANÇAMENTOS
"Pierrot" traduz melhor a modernidade de Schoenberg

ARTHUR NESTROVSKI
especial para a Folha

"Minha música não é moderna; é só mal tocada", costumava dizer Schoenberg (1874-1951). A frase é memorável, mas não inteiramente justa. Que sua música era mal tocada ninguém duvida. Mas nenhuma outra, mais do que ela, define a modernidade nesse século.
Toda uma estética e toda uma lógica da música são subvertidas ou reinventadas por Schoenberg, num pequeno número de obras definitivas, como o quarteto de cordas nº 2 (1908), as primeiras peças atonais para piano, op. 11, as "Cinco Peças" para orquestra, ou a ópera de câmara "Erwartung" (todas de 1909). Nessas composições, inaugura-se uma outra forma de imaginar a música, para além do princípio da tonalidade.
Escrevendo a um amigo, em 1912, Schoenberg dizia estar "a caminho de uma nova forma de expressão". Uma definição rápida dessa nova forma seria "expressionismo" -mas seria uma definição rápida demais.
Expressionismo e ironia, teatro e música abstrata, arte pura e cabaré, palavra e canto: tudo isso se mistura, com um toque de orientalismo e grandes doses de ambivalência, em "Pierrot Lunaire", "três vezes sete poemas de Albert Giraud", para soprano e um conjunto de cinco instrumentos.
Estreada naquele ano, a suíte de canções está para a música de câmara da nossa época como "A Sagração da Primavera", de Stravinski (1913), para o repertório orquestral.
Referência incontornável, mas nem por isso muito escutada, "Pierrot" recebe agora uma nova e linda gravação, com a soprano Christine Schäfer à frente do Ensemble InterContemporain regido por Pierre Boulez (Deutsche Grammophon).
Já virou clichê falar da "emancipação da dissonância", associada ao dodecafonismo de Schoenberg. Mas a dissonância é muitas vezes mal compreendida. A dissonância é precisamente o que faz a música qualquer música, tonal ou atonal ir para frente. Sem tensão, a música não sai do lugar. E o desafio de Schoenberg, ao compor uma música que não segue mais o sistema de tensões e resoluções da tonalidade, era imaginar outras formas de cadência.
No caso de "Pierrot Lunaire", que é exemplar das soluções encontradas por essa nova música, o sentido musical não depende prioritariamente da harmonia, mas sim das alterações de timbre, ritmo, textura e contorno das linhas.
Isso é tão verdade dos instrumentos quanto da famosíssima partitura vocal, escrita menos para ser cantada do que declamada, num misto de canto e fala que o compositor batizou de "Sprechstimme" ("cantofala").
A idéia não é completamente nova; já fora empregada pelo próprio Schoenberg em composições como a pequena "Herzgewächse", de 1911, para voz, celesta, harmônio e harpa (também incluída no disco) e remonta a toda uma tradição de cruzamentos entre música e texto recitado, que tem Schubert ou Liszt de um lado e as canções de cabaré alemão de outro.
Mas no op. 21 a liberdade relativa da linha da voz ganha conotações revolucionárias, no contexto atonal.
Faz mais de 30 anos que Pierre Boulez gravou "Pierrot Lunaire" pela primeira vez, com a soprano Helga Pylarczik. Num artigo da época ("Dire, jouer, chanter", 1963), ele descrevia a dificuldade de executar essa "arte de contrastes", em que um lirismo levemente irônico se alterna com a histeria e uma sentimentalidade desiludida. Boulez chamava a atenção para as ambiguidades afetivas da música e sublinhava a necessidade de se afastar de uma suposta angústia expressionista, tida como padrão. Mas só agora, com o benefício de mais uma geração inteira de distância, ele encontra uma cantora à altura de suas intenções.
Christine Schäfer soa especialmente à vontade nesses prazeres difíceis da música de Schoenberg. "A cor acima de tudo!", pedia o compositor, e a intensidade de cada nota ganha com ela um sentido expressivo primário.
Entre a fala e o canto, ironicamente suspensa entre o "lied" e a canção de cabaré, Schäfer é a cantora lunar por excelência, acompanhada por cinco gênios da delicadeza e do estranhamento.
Tanto contraste e tanta arte não se pode esperar do barítono David Pittman-Jennings, que recita o poema de Byron musicado por Schoenberg na "Ode to Napoleon Buonaparte", para quarteto de cordas, piano e voz.
Escrita 30 anos depois do "Pierrot", já no exílio americano do compositor, a "Ode" trata a voz com mais desenvoltura ainda, sem as graças do estilo quase paródico de 1912.
Mas a seriedade de propósito dessa peça composta em plena guerra, impede, até certo ponto, a fantasia inexplicável e incomparável do "Pierrot".
"A inteligência tem um dever moral de lutar contra a tirania", escreveu Schoenberg. Ainda não nasceu um compositor com maior retidão moral do que ele; mas nem sempre a expressão política aberta é a via da genialidade, nem mesmo quando é a via da humanidade.
A "Ode" não deixou descendentes, mas a influência de "Pierrot Lunaire" pode ser traçada em um grande número de obras modernas, desde a "História do Soldado", de Stravinski, as "Chansons Madécasses", de Ravel, e as canções de Webern até, muito especialmente, o ciclo "Le Marteau sans Maitre", do próprio Pierre Boulez.
A história dessas peças foi tornando cada vez mais compreensível a arte de Schoenberg. Mas compreensão e sentimento, na música, são uma coisa só; e essa nova gravação de "Pierrot Lunaire" torna possível, melhor do que nunca, compreender aquela nova forma de expressão inventada por Schoenberg, que é o que se conhece até hoje por modernidade.

Disco: Pierrot Lunaire. Herzgewächse. Ode to Napoleon
Compositor: Arnold Schoenberg
Soprano: Christine Schäfer
Orquestra: Ensemble InterContemporain
Regente: Pierre Boulez
Lançamento: Deutsche Grammophon
Quanto: R$ 20, em média


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