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A criação do horror
Grupo Ói Nóis Aqui Traveiz evoca a Guerra de Tróia para falar de terrorismo no Festival de Teatro de Curitiba, que começa amanhã
VALMIR SANTOS
DA REPORTAGEM LOCAL
Em 2001, quando ensaiava o seu
espetáculo mais recente, "Aos que
Virão Depois de Nós - Kassandra
in Process", a Tribo de Atuadores
Ói Nóis Aqui Traveiz foi surpreendida, como todo o planeta,
pelas imagens dos atentados às
torres gêmeas nos EUA, o fatídico
11 de Setembro.
Na última quinta, os artistas da
companhia preparavam um barracão para temporada no Festival
de Teatro de Curitiba e logo souberam das explosões em Madri.
São atrocidades que exemplificam o quanto a humanidade tem
caminhado fora dos trilhos. E não
de agora, mas ao longo da história: o horror, o horror, o horror.
O teatro ecoa esse lamento desde os trágicos da Grécia (Ésquilo,
Sófocles, Eurípides), no século 5
a.C., passando por William Shakespeare, no século 17, até os contemporâneos, como o alemão
Heiner Müller e o irlandês Samuel
Beckett. A Guerra de Tróia, considerada "mãe de todas", está no
centro da montagem do Ói Nós.
Há passagens que citam massacres do regime nazista ou, ainda
agora, conflitos no Oriente Médio. Conjuga-se ainda um aceno
de esperança e transformação segundo as convicções artísticas e
ideológicas do coletivo de Porto
Alegre, onde surgiu há 26 anos.
O Ói Nóis tornou-se referência
em teatro de rua no país. Sua trajetória combina espetáculos em
espaços fechados, como em sua
sede, a "terreira", espécie de galpão que permite dispor platéia e
cena conforme o projeto.
É o caso de "Kassandra in Process", que ocupará um barracão
de Curitiba durante os 11 dias do
festival, a partir de quinta-feira. O
evento será lançado amanhã para
convidados.
A lendária Guerra de Tróia é
contada sob a ótica de uma mulher, Kassandra. (A cidade grega é
arrasada, depois de cercada pelo
rei de Esparta, que se vinga de um
dos herdeiros troianos por causa
do rapto de sua mulher.)
A principal inspiração vem da
releitura do mito pela ensaísta e
crítica literária alemã Christa
Wolf, 74, na novela "Kassandra
- As Premissas e a Narrativa"
(1983). Ao contrário de Ésquilo,
Homero ou Eurípides, o texto de
Wolf abre mão dos deuses e concentra a narrativa no plano humano, reflexo das memórias da
autora socialista sobre a Segunda
Guerra Mundial (1939-45) ou sobre o muro que dividiu a Alemanha até 1989, quando ruiu.
Segundo a atriz Tânia Farias, 29,
sua Kassandra transmite "forte
humanidade e ímpeto, o que a faz
tomar determinadas atitudes e
brigar com quem tem que brigar". Profetisa, a personagem
alerta sobre as incongruências do
"matar ou morrer". Enfrenta até o
pai, o rei Príamo. "Essa perspectiva pacifista tem muito a ver com a
filosofia do Ói Nóis. Kassandra fala da preciosidade da vida, de sua
fragilidade. Age com uma loucura
de potência, ao contrário da lógica masculina bélica", diz Farias.
E Kassandra não será ouvida,
como as mulheres em geral nunca
o foram, historicamente relegadas
pelos senhores da guerra.
Um dos fundadores do grupo, o
ator Paulo Flores, 48, diz que a encenação coletiva de "Kassandra in
Process" radicaliza a investigação
do que chama de Teatro de Vivência, espaço real e simbólico de
comunhão plasmado em "Antígona - Ritos de Paixão e Morte"
(1990) e "Missa para Atores e Público sobre a Paixão e o Nascimento do Doutor Fausto de Acordo com o Espírito de Nosso Tempo" (1994).
Esse tratamento ritual, a que cena e público compartilham os
mesmos sentidos (visão, audição,
tato, olfato e paladar), em sete diferentes ambientes cênicos, está
na inspiração de origem do grupo: o ator, encenador e teórico
francês Antonin Artaud (1896-1948) e seu Teatro da Crueldade.
Em linhas gerais, Artaud rompia com superfícies literárias, psicologizantes, em nome de uma
experiência dramática poética
que subvertesse linguagens e implicasse um ator sensibilizado pela magia, perseverante em colar o
teatro à vida, e vice-versa.
A opção estética é, afinal, política. "Aos que Virão Depois de
Nós" é título de um poema do
dramaturgo alemão Bertolt
Brecht (1898-1956), condoído pelos "tempos sem sol".
"Acreditamos que arte e política
andam juntas", diz Flores, para
quem "as idéias libertárias e anarquistas" do grupo geram dificuldades à direita e à esquerda, em
uma batalha sem fim. Nada, porém, que justifique uma guerra.
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