São Paulo, quarta-feira, 16 de março de 2005

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Faces da morte

Após criar obras com animais em formol, Damien Hirst expõe nos EUA série de pinturas realistas sobre viciados e atentados

CAROL VOGEL
DO "NEW YORK TIMES"

Na manhã do último dia 10, cerca de 30 colaboradores de Damien Hirst trabalhavam freneticamente na galeria Gagosian, em Nova York. Alguns cambaleavam pela galeria carregando telas enormes, debatendo onde colocar os quadros. Outros, curvados sobre longas mesas de trabalho, nervosamente envernizavam telas para que estivessem prontas para o vernissage, no dia seguinte.
Não parecia diferente dos preparativos para qualquer exposição de Hirst, exceto pelas imagens exibidas: uma série perturbadora de uma viciada em crack se deteriorando à medida que o vício se agrava; um corredor vazio de hospital; a mão enluvada de um cirurgião sobre uma bandeja que abriga um cérebro fatiado; uma vista próxima de pílulas dentro de um armário de remédios; uma tela mostrando as conseqüências horripilantes de um atentado suicida em Bagdá; o retrato de um arruaceiro torcedor de futebol com o rosto gotejando sangue.
"É tudo bem desafiador", disse Frank Dunphy, o gerente comercial de Hirst. "Não é o tipo de quadro para pendurar sobre o sofá."
Mas não é que, em termos gerais, esses temas sejam estranhos para Hirst, famoso por expor tubarões e gado dentro de tanques de formol. A grande diferença é que suas obsessões agora se traduziram em pinturas de realismo fotográfico, algo inédito no repertório do artista de 39 anos.
Naquela mesma tarde, todos os 30 quadros da mostra "The Elusive Truth" [a verdade fugaz] -a primeira do artista nos EUA em quatro anos-, que fica em cartaz até 23 de abril, estavam vendidos, segundo Larry Gagosian, o dono da galeria. Os preços variavam de US$ 250 mil (R$ 688 mil) para as peças menores a US$ 2 milhões (R$ 5,5 milhões) para as maiores.
Mas a galeria não será o único lugar em Manhattan a abrigar seus trabalhos. No final de semana passado, "The Virgin Mother" [a mãe virgem], escultura em bronze de 11 m de altura, foi instalada no pátio da Lever House, na Park Avenue, entre as ruas 53 e 54.
Uma gigantesca paródia da famosa escultura de uma jovem dançarina feita por Degas, a versão de Hirst está em estágio de gestação e, de um dos lados do corpo, a pele foi retraída, expondo ossos, tecido muscular e o feto no ventre. A peça foi vendida à Lever House na semana passada.
Hirst literalmente veste seu fascínio pelo macabro. Ao entrar na galeria Gagosian, ele usava jeans e um casaco cinzento de flanela com um crânio colorido nas costas. Sob o casaco, uma camisa decorada por outro crânio colorido.
Um dos mais importantes membros do grupo conhecido como YBA ou Young British Artists [jovens artistas britânicos] e ganhador do Prêmio Turner de 1995, Damien Hirst se delicia em chocar seus leitores com obras que incluem animais mortos.
Entre as mais conhecidas, além das criaturas em formol, temos vacas putrefatas posicionadas para simular uma cópula, vermes atacando a cabeça de uma vaca, gabinetes de remédios cheios de centenas de vidros e caixas de medicamentos, pinturas de pontos e rabiscos coloridos e telas com borboletas de verdade afixadas.
"Estava ficando entediado com os animais mortos", disse Hirst, embora sorrisse diante da menção da recente venda de um de seus tubarões em formol ao bilionário Steven A. Cohen por US$ 8 milhões (R$ 22 milhões).
"Tenho pensado muito em pintura", diz o artista. Com o passar dos anos, segundo ele conta, acumulou cerca de mil imagens fotográficas que capturaram sua imaginação, oriundas principalmente de revistas e jornais.
Mas, inicialmente, a idéia de quadros ao modo do fotorrealismo o intimidava. Quando começou a sério, cerca de três anos e meio atrás, percebeu o motivo. "Comecei pintando com um compressor de ar, mas as imagens pareciam mortas, planas. Durante dois anos, não acreditei que isso fosse dar certo."
Por fim, afirma, se disciplinou para representar cada imagem fielmente, à mão livre. Ainda assim, não se vê como pintor sério. "Eu me sentiria desconfortável se me incluísse na mesma categoria de pintores como Goya ou Bacon", afirma. "As imagens me interessam mais do que a pintura."
Hirst também se importa em transmitir mensagens contraditórias. O retrato do torcedor de futebol arruaceiro, por exemplo, é um tanto vago. "Você vê o sangue, mas não sabe se ele é a vítima ou o responsável", afirma. "Devemos amá-lo ou odiá-lo?", pergunta. Também gosta de contração de cenas como sua pintura de um corredor de hospital vazio. "É tanto apavorante quanto confortador", afirma o britânico.
Admite prontamente que, como no caso de muitos dos artistas que fazem carreira hoje em dia, embora suas mãos estejam envolvidas em todos os quadros, alguns de seus assistentes -a maioria dos quais artistas treinados- realizam parte das pinturas por ele: "Tenho uma ótima equipe".

Gastronomia
Ao longo dos anos, Hirst também ganhou notoriedade como projetista e sócio do Pharmacy, um restaurante em Notting Hill, em Londres, para o qual projetou tudo, da decoração -quadros de borboletas e gabinetes de remédios com portas de vidro- aos bancos em formato de comprimidos de aspirina usados no bar, caixas de fósforos ilustradas com instrumentos cirúrgicos e porcelana com o logotipo da casa.
Após o fechamento do local, em 2003, ele guardou tudo, e as peças foram leiloadas em 2004 pela Sotheby's de Londres, arrecadando US$ 20 milhões (R$ 55 milhões), com investidores de todo o mundo disputando um pedaço do que já foi visto como um dos lugares mais modernos de Londres.
Hirst diz que não desistiu dos restaurantes. Está negociando a abertura de dois outros, um perto da galeria Gagosian, em Britannia Street, Londres, e outro em Paris, na Fundação François Pinault de Arte Contemporânea, edifício de 40 mil metros quadrados projetado por Tadao Ando que deve ser inaugurado em 2007 na Île Seguin, no Sena. (Pinault, magnata dos produtos de luxo, colecionador e proprietário da casa de leilões Christie's, é um grande fã do trabalho de Hirst, e especialistas em arte contemporânea dizem que está entre os compradores das obras expostas na atual mostra da Gagosian.)
"Quando o Pharmacy fechou, me senti fracassado", disse Hirst. "Queria ver se conseguia manter um restaurante de sucesso." Já pensou nos nomes para as duas novas casas: Insomnia e Amnesia.


Tradução Paulo Migliacci

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