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MARCELO COELHO
Espetáculo de sofrimento
Muita gente desvia o olhar
quando aparecem fotos de
tragédia no jornal. Mulheres chorando, enterros em massa, crianças feridas, doentes agonizando
no deserto -sempre há quem reclame, às vezes com razão, desses
retratos escancarados da dor humana.
Espero não ser desrespeitoso,
mas quero reclamar das imagens
do papa João Paulo 2º. Ao que tudo indica, é o próprio Vaticano
quem as divulga. Na segunda-feira, apareceu na Primeira Página
a foto de Sua Santidade dentro de
um carro, com as mãos em prece,
cobrindo o rosto. Não tinha nada
de chocante, exceto por um detalhe: no banco de trás, um cinegrafista acompanhava tudo.
Não param de filmar o papa, de
fotografá-lo, de expô-lo em janelas, sacadas, beirais incertos de
onde ele respinga alguns acenos
aos fiéis alarmados, incrédulos,
jubilantes. Por que expor com tamanha intensidade o declínio físico desse homem?
Talvez para mostrar que ele está
bem ou, pelo menos, ainda vivo.
Como em todo sistema politicamente fechado -lembremos a
União Soviética sob Tchernenko e
Andropov-, boatos em torno da
saúde de uma autoridade têm
efeito desestabilizador, e imagino
que funcionem como arma (não
sei bem de que jeito) no jogo sucessório. Mas não é preciso falar dos
últimos anos do regime soviético:
também no Brasil, por ocasião da
doença de Tancredo Neves, cruéis
operações fotográficas se desencadearam para satisfazer a expectativa do público e dos meios de comunicação.
Franzido, inquieto, quase belicoso em sua difícil sobrevivência,
João Paulo 2º se assemelha a uma
daquelas árvores da iconografia
romântica que se contorcem à beira do precipício, agarradas a um
avaro torrão de terra seca.
Resistência e teimosia sem dúvida constituem palavras-chave na
biografia de um clérigo que passou a vida lutando contra o comunismo em seu país. Segundo um
comentarista, aliás, é dessa dura
experiência de oposição na Polônia que provavelmente se originaram a têmpera e a tenacidade que
o papa demonstra ao condenar os
costumes sexuais do seu rebanho.
Nesse sentido, as fotos de um papa decrépito não deixam de ter
uma dimensão simbólica -seja
para os que aceitam suas teses, seja para quem discorda delas.
Sofrendo, segurando-se artificialmente aos rituais do cargo, incapaz de relaxar e de sorrir, lutando centímetro a centímetro contra
o próprio corpo, João Paulo 2º representa em si mesmo, em sua espantosa existência física, um
exemplo do esforço férreo e implacável do espírito para dominar a
carne. Simboliza também, nas
roupas e adereços que pesam por
cima de sua pessoa derruída, o poder opressivo, imobilizador, que a
tradição e o cargo exercem sobre
um ser humano, a ponto de deformá-lo assustadoramente. E é também assim, repetindo a mesma
máscara mineral de obstinação,
alheamento e dor, que as fotografias do papa exprimem a idéia de
uma defesa incondicional da vida, tal como a entende o dogma
católico.
Aquilo que o Vaticano já chamou de "cultura da morte"
-aborto, sexo com fins não-reprodutivos, eutanásia, pesquisa
com embriões- significa apenas,
para muitos de nós, o direito ao
prazer, à qualidade de vida, à dignidade na doença e aos resultados
do progresso científico.
Nada mais significativo do que
ver uma pequena multidão de militantes em cadeiras de rodas,
muitos com doenças extremamente graves, dolorosas e, por enquanto, incuráveis, comemorando no Congresso Nacional a aprovação da lei sobre pesquisas com
embriões. Ninguém tirou fotos,
nem sei se seria possível, dos representantes do campo adversário: que funcionários de uniforme
preto e crucifixos na lapela terão
se retirado, silenciosos, recurvos,
vulturinos, do local de votação
onde suas teses foram derrotadas?
Sem entrar na polêmica, mesmo
porque minha opinião a esta altura já estará clara para o leitor, parece-me estranho (esteticamente
estranho até) ver a igreja, de um
lado, e pessoas que sofrem, em cadeiras de rodas, do outro.
De qualquer modo, nas fotos do
papa exibe-se um sofrimento também, quase num espetáculo de
martírio exemplar. Na década de
80, João Paulo 2º inaugurava com
grande ímpeto o que se poderia
chamar de uma nova política midiática da Igreja Católica. Não me
refiro somente às cenas altamente
fotografáveis das viagens do pontífice -como o célebre costume de
beijar o chão dos aeroportos-
mas também a imagens ainda
mais inovadoras, como as de um
Karol Wojtyla esquiando no vigor
dos 60 anos. Já era o vocabulário
das celebridades, aplicado a objetivos pastorais.
Aquela inovação comunicacional agora se mistura, como tudo
neste papado, ao tradicionalismo
e à rigidez.
Fenômeno freqüente no catolicismo, a solidariedade cristã aos
sofredores mais uma vez se confunde com o culto ao sofrimento.
Das imagens de santos torturados
que cobrem as paredes de toda
igreja deste mundo ao martírio
cotidiano, acompanhado ao vivo,
de João Paulo 2º, um mesmo espetáculo, edificante, horrível e sublime, repete-se.
Por falar em doença, morte e sofrimento, eis uma pechincha, que
leio em prospecto recebido pelo
correio: "Vacinação para dez
crianças, R$ 27. Tratar cinco pessoas de malária, R$ 36. Suprimentos médicos de emergência
para cem pessoas durante um
mês, R$ 50. Um dia de alimentação para 200 crianças, R$ 100. Um
kit médico completo para atender
1.500 pessoas durante um mês, R$
450."
Trata-se do que oferece a ONG
"Médicos sem Fronteiras" em troca de doações dos interessados. O
site é www.msf.org.br.
@ - coelhofsp@uol.com.br
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