São Paulo, quarta-feira, 16 de março de 2005

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MARCELO COELHO

Espetáculo de sofrimento

Muita gente desvia o olhar quando aparecem fotos de tragédia no jornal. Mulheres chorando, enterros em massa, crianças feridas, doentes agonizando no deserto -sempre há quem reclame, às vezes com razão, desses retratos escancarados da dor humana.
Espero não ser desrespeitoso, mas quero reclamar das imagens do papa João Paulo 2º. Ao que tudo indica, é o próprio Vaticano quem as divulga. Na segunda-feira, apareceu na Primeira Página a foto de Sua Santidade dentro de um carro, com as mãos em prece, cobrindo o rosto. Não tinha nada de chocante, exceto por um detalhe: no banco de trás, um cinegrafista acompanhava tudo.
Não param de filmar o papa, de fotografá-lo, de expô-lo em janelas, sacadas, beirais incertos de onde ele respinga alguns acenos aos fiéis alarmados, incrédulos, jubilantes. Por que expor com tamanha intensidade o declínio físico desse homem?
Talvez para mostrar que ele está bem ou, pelo menos, ainda vivo. Como em todo sistema politicamente fechado -lembremos a União Soviética sob Tchernenko e Andropov-, boatos em torno da saúde de uma autoridade têm efeito desestabilizador, e imagino que funcionem como arma (não sei bem de que jeito) no jogo sucessório. Mas não é preciso falar dos últimos anos do regime soviético: também no Brasil, por ocasião da doença de Tancredo Neves, cruéis operações fotográficas se desencadearam para satisfazer a expectativa do público e dos meios de comunicação.
Franzido, inquieto, quase belicoso em sua difícil sobrevivência, João Paulo 2º se assemelha a uma daquelas árvores da iconografia romântica que se contorcem à beira do precipício, agarradas a um avaro torrão de terra seca.
Resistência e teimosia sem dúvida constituem palavras-chave na biografia de um clérigo que passou a vida lutando contra o comunismo em seu país. Segundo um comentarista, aliás, é dessa dura experiência de oposição na Polônia que provavelmente se originaram a têmpera e a tenacidade que o papa demonstra ao condenar os costumes sexuais do seu rebanho.
Nesse sentido, as fotos de um papa decrépito não deixam de ter uma dimensão simbólica -seja para os que aceitam suas teses, seja para quem discorda delas.
Sofrendo, segurando-se artificialmente aos rituais do cargo, incapaz de relaxar e de sorrir, lutando centímetro a centímetro contra o próprio corpo, João Paulo 2º representa em si mesmo, em sua espantosa existência física, um exemplo do esforço férreo e implacável do espírito para dominar a carne. Simboliza também, nas roupas e adereços que pesam por cima de sua pessoa derruída, o poder opressivo, imobilizador, que a tradição e o cargo exercem sobre um ser humano, a ponto de deformá-lo assustadoramente. E é também assim, repetindo a mesma máscara mineral de obstinação, alheamento e dor, que as fotografias do papa exprimem a idéia de uma defesa incondicional da vida, tal como a entende o dogma católico.
Aquilo que o Vaticano já chamou de "cultura da morte" -aborto, sexo com fins não-reprodutivos, eutanásia, pesquisa com embriões- significa apenas, para muitos de nós, o direito ao prazer, à qualidade de vida, à dignidade na doença e aos resultados do progresso científico.
Nada mais significativo do que ver uma pequena multidão de militantes em cadeiras de rodas, muitos com doenças extremamente graves, dolorosas e, por enquanto, incuráveis, comemorando no Congresso Nacional a aprovação da lei sobre pesquisas com embriões. Ninguém tirou fotos, nem sei se seria possível, dos representantes do campo adversário: que funcionários de uniforme preto e crucifixos na lapela terão se retirado, silenciosos, recurvos, vulturinos, do local de votação onde suas teses foram derrotadas?
Sem entrar na polêmica, mesmo porque minha opinião a esta altura já estará clara para o leitor, parece-me estranho (esteticamente estranho até) ver a igreja, de um lado, e pessoas que sofrem, em cadeiras de rodas, do outro.
De qualquer modo, nas fotos do papa exibe-se um sofrimento também, quase num espetáculo de martírio exemplar. Na década de 80, João Paulo 2º inaugurava com grande ímpeto o que se poderia chamar de uma nova política midiática da Igreja Católica. Não me refiro somente às cenas altamente fotografáveis das viagens do pontífice -como o célebre costume de beijar o chão dos aeroportos- mas também a imagens ainda mais inovadoras, como as de um Karol Wojtyla esquiando no vigor dos 60 anos. Já era o vocabulário das celebridades, aplicado a objetivos pastorais.
Aquela inovação comunicacional agora se mistura, como tudo neste papado, ao tradicionalismo e à rigidez.
Fenômeno freqüente no catolicismo, a solidariedade cristã aos sofredores mais uma vez se confunde com o culto ao sofrimento. Das imagens de santos torturados que cobrem as paredes de toda igreja deste mundo ao martírio cotidiano, acompanhado ao vivo, de João Paulo 2º, um mesmo espetáculo, edificante, horrível e sublime, repete-se.
Por falar em doença, morte e sofrimento, eis uma pechincha, que leio em prospecto recebido pelo correio: "Vacinação para dez crianças, R$ 27. Tratar cinco pessoas de malária, R$ 36. Suprimentos médicos de emergência para cem pessoas durante um mês, R$ 50. Um dia de alimentação para 200 crianças, R$ 100. Um kit médico completo para atender 1.500 pessoas durante um mês, R$ 450."
Trata-se do que oferece a ONG "Médicos sem Fronteiras" em troca de doações dos interessados. O site é www.msf.org.br.


@ - coelhofsp@uol.com.br

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