São Paulo, segunda, 16 de março de 1998

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RUMO AO PARAÍSO
Adversidades não impediram produção

PAULO VIEIRA
especial para a Folha

Se 1997 havia sido um ano trágico para a MPB (a morte de Chico Science e os discos de Gil, Caetano e Gal), o horizonte não se prenuncia menos negro para 98 (a morte de Tim Maia e os discos vindouros da mesma tríade).
Lutando contra inacreditáveis adversidades -falta de gravadora, processos movidos por músicos e problemas de saúde-, Tim Maia conseguia produzir com alguma regularidade, embora com qualidade oscilante. Alguns de seus discos dos 90 sofreram visivelmente da falta de recursos: ou foram produzidos pelo próprio cantor, ou tiveram músicas concebidas para uso de poucas horas de estúdio. Além disso, Tim não podia contar com o esquema de distribuição e divulgação das grandes gravadoras, com quem brigava.
(Não sem motivos. Só a PolyGram lançou, por sua série "Colecionador", toda a obra para o selo de Tim -e de Ben Jor, Gal Costa e Gil- sem a anuência dos autores. Eles receberam quantias irrisórias por isso, e a gravadora foi impelida a retirar os discos do mercado).
Esses percalços seriam suficientes para fazer de Tim o cantor mais "underground" da casta mais privilegiada da MPB -aqueles que tocam em rádio e gravam jingles para comerciais de sandália-, mas outras de suas características contribuíram para que sua partida seja motivo de extenso luto no país, a saber:
Dos cantores de black music dos anos 70, Tim foi o único a sobreviver, mesmo que para isso tivesse de se submeter às composições de Sullivan/Massadas. É verdade que o cenário hoje abre espaço para o rap, para o balanço de seu sobrinho Ed Motta e até para a neurastenia honesta de Fernanda Abreu, mas quem é que vai gritar "au, au" no meio das músicas?
Ninguém, como Maia, soube ser tão genuína e criativamente incorreto no trato com a imprensa. Lidava com truculência calculada com jornalistas. Ia a programas estúpidos, como o "Perfil", de Otávio Mesquita, não permitindo que o apresentador falasse; ameaçava judicialmente jornalistas da mídia impressa que brincavam com seu proverbial problema de não ir aos próprios shows. Numa entrevista ligeira dada a mim numa gravação do programa "Hebe", pediu à secretária que anotasse meu nome, para que posteriormente pudesse me processar;
Era capaz de dedicar uma música como "Me Dê Motivo" ("Me dê motivo/ Pra ir embora (...) você pôs tudo a perder/ não podia me fazer o que fez") ao técnico de som de um show no Palace em 97, em São Paulo; cantar fitando-o nos olhos, em razão da péssima qualidade de som;
Sua incontinência verbal fazia delatar a si mesmo como usuário de drogas e sexo pouco convencional, quando não associava a cocaína a práticas homossexuais;
Por esses motivos, e claro, alimentado pelos fatos e pela lenda de seus bolos, Tim, ao aparecer nos shows ou em programas de auditório, era saudado como um verdadeiro Fidel Castro. Não só pela eloquência de suas medidas, mas pelo fato de todos saberem que ali chegava o melhor e mais gabaritado animador, farrista e catalisador de atenções que a MPB produziu. Já seria o bastante para reservar-lhe um lugar no Paraíso.



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