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CARLOS HEITOR CONY
O último tango em Paris e a ligação errada
"Revendo meu caderno
de notas, encontrei seu
endereço, resolvi telefonar, alô,
alô, como vai você, não venha
com a desculpa de que eu errei a
ligação." Não parece, mas é o início de um sambinha dos anos 50,
cujo autor e intérprete não lembro. Lembro o garagista onde
guardava meu carro que sempre
o cantava enquanto lavava os automóveis entregues à sua guarda.
Volta e meia essa letra mais ou
menos infame me vem inteirinha,
sobretudo quando, sem muita
coisa a fazer, fico que nem o personagem desse samba, "revendo
meu caderno de notas" e outros
cadernos e papéis avulsos que fui
guardando pelo tempo afora.
Acontece que, às vezes, ainda
como o personagem do samba, erro de ligação e entro onde não devia nem queria. Foi assim que,
numa tarde dessas, encontrei alguns recortes do tempo em que escrevia sobre cinema para uma revista que não existe mais e que
me mandava a Paris ou Roma
para ver filmes que demoravam a
chegar ao Brasil ou que nunca
chegavam, e quando chegavam
tinham sua exibição proibida pela censura.
Num desses recortes, pomposamente datados de Paris, encontro
a pequena resenha que fiz para
um filme que provocava espasmos na ocasião, havia gente que
atravessava o Atlântico para ver
a preciosidade que, antecipadamente sabia-se, jamais seria exibida em telas castas como as nossas daquele tempo.
O filme era "O Último Tango
em Paris", que outro dia passou
numa das TVs a cabo, quase anonimamente e sem fazer os estragos morais que se temia. Transcrevo a resenha, tal como foi publicada ali pelos inícios dos anos
70:
"Filme inqualificável, esse de
Bertolucci, mais escândalo do que
sucesso em Paris e agora em Nova
York. Uma temática infanto-juvenil (a exaustão do sexo como
forma de diálogo) diluída num
moralismo de congregado mariano e tratada por um cineasta que
domina o seu ofício, mas ainda
não tem nada a dizer. Seu mérito
mais ostensivo é a coragem de
mostrar, a ousadia de condenar
aquilo que mostra -uma ousadia de cruzado medieval que nada fica a dever à simpática cara-de-pau dos membros do Exército
da Salvação. Bertolucci abriu as
porteiras -e agora o dilúvio. Como qualquer dilúvio, fará bem à
humanidade, exceto aos cineastas do chamado Terceiro Mundo,
que resistem a qualquer dilúvio
saneador. Marlon Brando arfa
durante o filme inteiro e mostra-se desinformado em matéria de
certas brincadeiras. Utiliza-se da
celebrada manteiga da Normandia para indevidos fins, demonstrando total ignorância dos macetes que qualquer menininho do
Brasil conhece desde cedo.
Maria Schneider estoura na tela
como ninfômana e atriz -as
duas coisas em igual medida. A
favor de Bertolucci, uma façanha:
Jean-Pierre Léaud, aquele canastrão embrionário e obrigatório
dos filmes de Godard, aqui aparece realizado, conseguindo um papel que lhe cai sob medida e para
o qual não precisou fazer esforço:
o do jovem idiotizado pelo cinema. Ele tem o físico, o entusiasmo
e a vida pregressa para ser ele próprio o idiota, não o da família,
mas o do cinema.
A música é quase excepcional.
"O tango é uma maneira de caminhar pela vida" -disse Borges. E
um reparo final: Marlon Brando
só deixa de arfar na cena em que
Maria Schneider, depois de cortar
as próprias unhas, aplica-lhe
uma massagem estimulante. No
fundo, um filme mais inútil do
que impróprio para maiores de 18
anos, que daqui a algum tempo
será exibido nos colégios de freiras e nos quartéis das Forças Armadas".
É isso aí. Um escritor profissional, como o cronista, obriga-se a
escrever tanto que, embora erre
muito, é impossibilitado de errar
sempre. É mais ou menos como
nas antigas apostas da Loteria Esportiva, em que se cravava palpites em 13 jogos, nas hipóteses de
vitória, derrota ou empate. Era
mais fácil fazer os 13 pontos do
que errar em todos, sempre se
acertava em um ou dois jogos.
Anos depois, o mesmo Marlon
Brando fez furor num filme ítalo-americano em que, no papel de
um poderoso chefão da Máfia,
aparecia com as bochechas cheias
de algodão, arfando o tempo todo
por outros motivos que não os
provocados pela lasciva mocinha
do último tango em Paris. Alguns
atores nacionais achavam que arfar era moda e quase todos arfavam, uns mais, outros menos, até
mesmo quando faziam discursos
cívicos pela reforma agrária e
contra o imperialismo.
Bem, voltemos ao sambinha
com que inicio esta crônica. Lembro agora o nome dele, "Joãozinho Boa-Pinta", parece coisa do
Haroldo Barbosa ou do Miguel
Gustavo. E tem um segmento que
considero um primor na poética
popular: "Não sei se ainda posso
lhe chamar de meu amor, não sei
se ainda tenho aquela velha intimidade...".
Remexi meus papéis avulsos, tal
como o Joãozinho Boa-Pinta revia seu caderno de notas. De repente, encontrei o nome e o telefone de uma intimidade que, sem
ser velha, era antiga. Antes que
caísse em tentação e discasse
aquele número, pensei melhor e
fiquei sem a desculpa de que errara na ligação.
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