São Paulo, sábado, 16 de abril de 2005

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TEATRO

Espetáculo dirigido e criado por François Tanguy se baseia em textos de escritores marginais e faz provocação visual

"Coda" mergulha em sensações insólitas

SERGIO SALVIA COELHO
CRÍTICO DA FOLHA

Um teatro pelo avesso, uma arquitetura de fragmentos, uma sinfonia de balbucios. Definir o que é "Coda" não é fácil, e talvez esteja nisso o grande interesse do espetáculo. Não é sempre agradável a sensação de estar à deriva, ora mergulhado em ondas de estímulos visuais e sonoros, ora se agarrando nos vestígios de referências cultas que nos lança o Théâtre du Radeau, balsa de náufragos, barco bêbado de Rimbaud. Mas é essa sensação de insólito, de inaugural, de obra aberta em teste de Rorschach, que faz do espetáculo uma iguaria rara.
Em cenário que remete a depósito de painéis deslizantes, restos de luxuosas produções já esquecidas, que recortam luzes fantasmagóricas, pavoneiam-se atores em busca de personagens, mas que são pouco mais que vozes que reverberam no limbo, encobertas pela trilha de Verdis e Bachs.
O texto ao qual se agarram não deriva, via de regra, de peças de teatro: se faz de fragmentos de Hölderlin, poeta alemão que enlouqueceu antes de escrever sua tragédia; de Gadda, autor italiano contemporâneo que nunca terminava seus romances, e outros marginais camicases, como Artaud e Dante. Não configura um sentido, mas um olhar externo que desentende o mundo.
Além de uma entonação que vai do lamento monocórdio à retórica feroz, o diretor François Tanguy propõe aos atores uma marcação atlética e precisa, mas sem objetivos claros, como um relógio atemporal com engrenagens à mostra. E é tal a maestria do elenco na execução dessa obscura partitura que não chama a atenção para si, emocionando sem ter nenhuma história para contar.
Quanto às provocações visuais do figurino, o encontro inesperado do tutu e da casaca começa por suscitar o humor anárquico surrealista, de insolência magrittiana. Mas, aos poucos, a intimidade enche o palco com a melancolia de Degas, como se fôssemos sugados para essa outra época, até se desdobrar, em planos cada vez mais distantes e metafísicos, no mistério insondável de Vermeer.
O resultado transcende a novidade de seus recursos para ir em busca de uma arte que consiga dar conta da fragmentação infinita do novo milênio, ecoando, assim, outros momentos de impasse e de dúvida, como a cena shakespeareana. Uma linguagem para a hesitação, segundo a expressão cunhada anos atrás por Gerald Thomas, veterano náufrago.
"Coda" propõe um teatro de transição, com cartas cifradas nas mangas e sem certeza nas mãos, cheio de som e melancolia, e que, talvez, volte a significar algo.


Coda
    
Onde: Sesc Belenzinho - galpão de exposições (av. Álvaro Ramos, 915, SP, tel. 0/xx/11/6602-3700)
Quando: hoje e amanhã, às 20h
Quanto: de R$ 10 a R$ 20


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