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Música
Liberação de sambas de Noel divide artistas
Lucas Santtana quer tirar compositor do "pedestal'; Beth Carvalho lamenta pela família
"Noel, Domínio Público" pretende reunir jovens músicos para releituras no próximo semestre e depois lançá-las para público remixar
JOSÉ FLÁVIO JÚNIOR
COLABORAÇÃO PARA A FOLHA
Desde o primeiro dia do ano,
Noel Rosa é do povo. Segundo a
lei brasileira dos direitos autorais, os herdeiros de um compositor deixam de receber pela
sua obra no ano que sucede o
70º aniversário da morte do artista. O sambista de Vila Isabel,
vitimado pela tuberculose em
1937, é um dos primeiros compositores populares do país a
cair em domínio público.
Tecnicamente, isso significa
que qualquer pessoa pode fazer
uso dos 108 sambas que Noel
escreveu sozinho sem se preocupar com o Ecad, órgão que
cuida da arrecadação dos direitos autorais das obras protegidas. Entre eles, estão os sucessos "Com que Roupa", "Fita
Amarela" e "Três Apitos".
A regra não vale para "Conversa de Botequim", "Pierrot
Apaixonado", "Pastorinhas" e
tantas outras canções que Noel
escreveu com parceiros que
morreram há menos de 70 anos
(neste caso, as famílias de Noel
e dos parceiros seguem administrando e recebendo pelo uso
das músicas). No total, o Poeta
da Vila compôs 259 temas, número impressionante para alguém que viveu só 26 anos.
Co-autor da biografia que catalogou os sambas de Noel
("Noel Rosa: Uma Biografia",
com João Máximo), Carlos Didier chama atenção para o
"sentido belo no domínio público". "A turma só pensa em
grana. O sentido seria: volta ao
povo o que do povo nasceu."
O fato inspirou Ronaldo Lemos, professor da Fundação
Getúlio Vargas e diretor do
Creative Commons, a bolar
"Noel, Domínio Público: Recriando, Remixando, Disseminando". O projeto, que deve tomar corpo no próximo semestre, pretende reunir um grupo
heterogêneo de artistas novos
para reler o repertório de Noel
não mais protegido por lei.
O material será gravado em
CD e encartado com um livro e
um DVD-R com todas as faixas
de áudio abertas, prontas para
remixagens do público. Tudo
isso também estará na internet.
O Sesc, parceiro da empreitada,
ainda abrigará um show reunindo os músicos envolvidos.
Soa bastante ambicioso. Mas
Lemos não acredita que o projeto possa gerar uma febre de
Noel Rosa ou mesmo a superexposição de sua obra. "A avalanche de informações e de
conteúdo disponível faz com
que a atenção das pessoas fique
totalmente dispersa. Não fosse
essa iniciativa, é possível que
ninguém nem tivesse percebido que sambas do Noel já estão
em domínio público", afirma.
Dylan brasileiro
Escalado para a direção artística, o cantor e compositor Lucas Santtana crê que o projeto
possa levar Noel aonde ele ainda não chegou. "A geração da
Mallu Magalhães conhece Bob
Dylan, mas não conhece Noel
Rosa, cujas letras são tão atuais,
sarcásticas e críticas da sociedade moderna quanto as de
Dylan. A intenção é tirar Noel
do pedestal e colocá-lo novamente na rua, lugar que foi inspiração para toda a sua obra."
Dentre os nomes de músicos
e bandas que estão sendo cogitados para integrar "Noel, Domínio Público", constam os dos
paulistanos Curumin e Hurtmold, do gaúcho Marcelo Birck,
do paraense La Pupuña, do alagoano Wado e do cearense Cidadão Instigado.
Fernando Catatau, do Cidadão, diz que se for chamado para participar dará o seu melhor
("Até porque não quero ninguém puxando meu pé quando
estiver dormindo"), mas se vê
numa posição contraditória.
"Não gosto da idéia de ouvir as
faixas dos meus ídolos abertas.
Perde a magia. Não quero ouvir
só a guitarra do Jimi Hendrix.
Aquilo só faz sentido para mim
com a gangue dele tocando."
Beth Carvalho, que acaba de
participar de um concerto calcado no repertório de Noel,
considera válida qualquer iniciativa de se perpetuar suas
criações. "Sempre vão existir
deturpações. Mas ele era tão
genial que fica difícil alguém
conseguir estragá-lo", diz. Ela
só lamenta que a família do
sambista não vá mais receber
os direitos autorais. Acha que
as composições nunca deveriam cair em domínio público.
"Grande bobagem"
Já o compositor, cantor e escritor Nei Lopes não vê com
bons olhos a idéia de "reconstruir" sambas de Noel. "Me parece uma grande bobagem,
principalmente por se tratar de
uma obra sempre atual e irretocável. Isso é fruto de um certo
pensamento (no fundo, racista)
de que samba é algo menor, velho, passadista, pobre, que não
evolui, quando as evidências
estão aí mostrando que, desde
1917, o nosso gênero-mãe se renova quase a cada década", diz.
E indaga: "Numa hora dessas
como é que fica o tombamento
do samba realizado pelo Ministério da Cultura?".
Ciente de que o projeto gerará debate e manifestações como a de Lopes, Ronaldo Lemos
lembra que "o próprio Noel
criou muita coisa bacana porque trafegava entre vários
mundos musicais diferentes no
começo do século passado.
Quanto mais a obra dele trafegar entre mundos diferentes,
maior será a homenagem".
Santtana já deu uma contribuição informal transformando "Com que Roupa" num hino
de exaltação ao Flamengo. Sobre a melodia, ele criou versos
para incentivar o clube carioca
na Taça Libertadores da América. Antes da aprovação do
presidente das torcidas organizadas, o time foi eliminado do
torneio. O músico ficou só com
o sonho. "Já pensou? O Maracanã lotado cantando Noel?".
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