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RESENHAS
Ascher exerce poder da recriação em 'Poesia Alheia'
BERNARDO CARVALHO
especial para a Folha
Seria possível
dizer que "Poesia Alheia - 124
Poemas Traduzidos", de Nelson Ascher, é
apenas um livro
inteligente. Se ele se limitasse à
clara argumentação do prefácio
em que defende sua opção por
uma tradução criativa da poesia.
Se em seguida não houvesse os
124 exemplos que lhe dão respaldo
com a prova bem-sucedida, e cabal, do que teoricamente defendia.
As reflexões sobre a tradução
poética costumam desembocar,
com frequência e ao contrário do
que deveria ser a finalidade de
uma reflexão, em mistificação.
É o risco de se tentar dar uma
razão ao que não tem, uma explicação ao que, no fundo, é inexplicável -como um bom poema,
que não é apenas sentido, nem
apenas forma, nem apenas técnica.
A idéia de que, por ser impossível, toda tradução, boa ou má, é
sempre uma recriação e que deveria, portanto, no primeiro caso
(quando é boa), ser louvada como
um novo original produz não raro, apesar de sua lógica impecável,
um certo mal-estar, sobretudo entre os chamados leitores leigos.
Afinal, se fosse tão original assim, por que precisaria ser chamada de tradução, estar ainda ancorada num original anterior? Por
que não se assumir simplesmente
como um novo poema? E se criação e tradução são sinônimos, por
que não eliminar simplesmente
um dos dois termos do vocabulário?
O texto introdutório de Nelson
Ascher ao seu competente (e criativo) "Poesia Alheia" deve esclarecer em parte essas dúvidas comezinhas que costumam assombrar os amadores da poesia, esses
leitores leigos cujo encantamento
por um poema não vem de seus
conhecimentos técnicos, mas justamente do que lhes escapa -já
que os profissionais parecem em
geral, e infelizmente, não ser atormentados por questões tão básicas.
Na verdade, a primeira seção do
livro ("Roma em Ruínas") já serve como uma espécie de exemplo
prático da tese da "recriação",
marcando uma tomada de posição
quase borgiana sobre a criação literária (que, no fundo, só há recriação), ao reunir quatro recomposições do poema "Sobre Roma", do renascentista Janus Vitalis, por nomes da estatura de Du
Bellay e Quevedo.
A partir daí, "Poesia Alheia"
prossegue com boa parte do trabalho de tradutor do poeta e crítico
nos últimos 20 anos, traduções
que vão de Catulo e Horácio a Seamus Heaney e Hans Magnus Enzensberger, passando por Lutero,
Hoelderlin, Melville, Yeats, Valéry, Borges, Auden, Ungaretti,
Brecht, Ingeborg Bachmann, além
de baladas húngaras, poetas eslavos e de língua hebraica.
Boa ou ruim
Na sua introdução, Ascher cita
entre outras a definição pouco
laudatória para a tradução que o
americano Robert Frost faz da
poesia ("poesia é o que se perde
na tradução"), para depois concluir que, sendo sempre diferente
do original, "a tradução correta
não existe: uma vez que não esteja
errada, ela será (como todas as
possíveis gradações intermediárias) boa ou ruim".
A discussão se abre então para o
lado lúdico, o que torna as coisas
menos mistificadas e bem mais interessantes.
Sendo sempre uma versão -e aí
está sua diferença do original, que
não é único apenas por mistificação de uma pressuposta aura, mas
por não ser "uma" versão a mais
e sim, querendo ou não, "a" versão de onde todas as outras podem
partir-, o jogo da tradução, e o
que está em jogo na tradução, passa a ser esse poder de sempre fazer
uma nova versão, sempre haver a
possibilidade de uma melhor solução na sua relação "recriativa"
com o original.
E com isso, as possibilidades
passam a ser infinitas não só para
o tradutor como para o leitor. A
tradução de Ascher pode, por
exemplo, chegar até a revelar inesperadamente o quanto um soneto
do inglês elisabetano Michael
Drayton (1563-1631) tem a ver
com um sambinha, ou introduzir
World Trade Center, Hollywood,
Tietê e Jânio Quadros numa ode
de Horácio (65-8 a.C.).
Se o leitor leigo é aquele para
quem, sem domínio ou particular
interesse pela técnica, a poesia é de
fato, como diz Frost, esse inexplicável que se perde na tradução,
então aqui ele só tem a ganhar.
Para o leigo, a boa poesia é a que
o encontra no momento certo, e o
desperta. É o leitor que sabe se fazer despertar pela lógica e pela trama lúdica da poesia. E não lhe faltarão oportunidades para esse jogo em "Poesia Alheia".
Livro: Poesia Alheia - 124 Poemas
Traduzidos
Autor: Nelson Ascher
Lançamento: Imago
Quanto: R$ 30 (378 págs.)
Sugestões de poemas: Horácio, Ode 3/30
(págs. 64, 65); Yeats, Um Manto (págs. 96,
97); Elizabeth Bishop, Uma Certa Arte
(págs. 134, 135); John Ashbery, Paradoxos
e Oxímoros (págs. 172, 173); Ungaretti,
Vigília (págs. 254, 255)
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