São Paulo, sábado, 16 de maio de 1998

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

RESENHAS
Ascher exerce poder da recriação em 'Poesia Alheia'

BERNARDO CARVALHO
especial para a Folha


Seria possível dizer que "Poesia Alheia - 124 Poemas Traduzidos", de Nelson Ascher, é apenas um livro inteligente. Se ele se limitasse à clara argumentação do prefácio em que defende sua opção por uma tradução criativa da poesia.
Se em seguida não houvesse os 124 exemplos que lhe dão respaldo com a prova bem-sucedida, e cabal, do que teoricamente defendia.
As reflexões sobre a tradução poética costumam desembocar, com frequência e ao contrário do que deveria ser a finalidade de uma reflexão, em mistificação.
É o risco de se tentar dar uma razão ao que não tem, uma explicação ao que, no fundo, é inexplicável -como um bom poema, que não é apenas sentido, nem apenas forma, nem apenas técnica.
A idéia de que, por ser impossível, toda tradução, boa ou má, é sempre uma recriação e que deveria, portanto, no primeiro caso (quando é boa), ser louvada como um novo original produz não raro, apesar de sua lógica impecável, um certo mal-estar, sobretudo entre os chamados leitores leigos.
Afinal, se fosse tão original assim, por que precisaria ser chamada de tradução, estar ainda ancorada num original anterior? Por que não se assumir simplesmente como um novo poema? E se criação e tradução são sinônimos, por que não eliminar simplesmente um dos dois termos do vocabulário?
O texto introdutório de Nelson Ascher ao seu competente (e criativo) "Poesia Alheia" deve esclarecer em parte essas dúvidas comezinhas que costumam assombrar os amadores da poesia, esses leitores leigos cujo encantamento por um poema não vem de seus conhecimentos técnicos, mas justamente do que lhes escapa -já que os profissionais parecem em geral, e infelizmente, não ser atormentados por questões tão básicas.
Na verdade, a primeira seção do livro ("Roma em Ruínas") já serve como uma espécie de exemplo prático da tese da "recriação", marcando uma tomada de posição quase borgiana sobre a criação literária (que, no fundo, só há recriação), ao reunir quatro recomposições do poema "Sobre Roma", do renascentista Janus Vitalis, por nomes da estatura de Du Bellay e Quevedo.
A partir daí, "Poesia Alheia" prossegue com boa parte do trabalho de tradutor do poeta e crítico nos últimos 20 anos, traduções que vão de Catulo e Horácio a Seamus Heaney e Hans Magnus Enzensberger, passando por Lutero, Hoelderlin, Melville, Yeats, Valéry, Borges, Auden, Ungaretti, Brecht, Ingeborg Bachmann, além de baladas húngaras, poetas eslavos e de língua hebraica.
Boa ou ruim
Na sua introdução, Ascher cita entre outras a definição pouco laudatória para a tradução que o americano Robert Frost faz da poesia ("poesia é o que se perde na tradução"), para depois concluir que, sendo sempre diferente do original, "a tradução correta não existe: uma vez que não esteja errada, ela será (como todas as possíveis gradações intermediárias) boa ou ruim".
A discussão se abre então para o lado lúdico, o que torna as coisas menos mistificadas e bem mais interessantes.
Sendo sempre uma versão -e aí está sua diferença do original, que não é único apenas por mistificação de uma pressuposta aura, mas por não ser "uma" versão a mais e sim, querendo ou não, "a" versão de onde todas as outras podem partir-, o jogo da tradução, e o que está em jogo na tradução, passa a ser esse poder de sempre fazer uma nova versão, sempre haver a possibilidade de uma melhor solução na sua relação "recriativa" com o original.
E com isso, as possibilidades passam a ser infinitas não só para o tradutor como para o leitor. A tradução de Ascher pode, por exemplo, chegar até a revelar inesperadamente o quanto um soneto do inglês elisabetano Michael Drayton (1563-1631) tem a ver com um sambinha, ou introduzir World Trade Center, Hollywood, Tietê e Jânio Quadros numa ode de Horácio (65-8 a.C.).
Se o leitor leigo é aquele para quem, sem domínio ou particular interesse pela técnica, a poesia é de fato, como diz Frost, esse inexplicável que se perde na tradução, então aqui ele só tem a ganhar.
Para o leigo, a boa poesia é a que o encontra no momento certo, e o desperta. É o leitor que sabe se fazer despertar pela lógica e pela trama lúdica da poesia. E não lhe faltarão oportunidades para esse jogo em "Poesia Alheia".

Livro: Poesia Alheia - 124 Poemas Traduzidos
Autor: Nelson Ascher
Lançamento: Imago
Quanto: R$ 30 (378 págs.)
Sugestões de poemas: Horácio, Ode 3/30 (págs. 64, 65); Yeats, Um Manto (págs. 96, 97); Elizabeth Bishop, Uma Certa Arte (págs. 134, 135); John Ashbery, Paradoxos e Oxímoros (págs. 172, 173); Ungaretti, Vigília (págs. 254, 255)


Texto Anterior | Próximo Texto | Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Agência Folha.