São Paulo, sábado, 16 de maio de 1998

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Rubião monta obra rara da literatura fantástica

PRISCILA FIGUEIREDO
especial para a Folha

Difícil situar o escritor mineiro Murilo Rubião no quadro geral da literatura brasileira. Sua narrativa, comparada logo em sua estréia (1947) com a de Kafka, comunga com esta em mais de um aspecto, especialmente na construção lógica do absurdo. Surtos desgarrados de uma tradição que sempre amparou a ficção mais na observação e no documento, seus 32 contos acham-se agora reunidos em edição da Ática. Pequena rara obra de um autor empenhado em reelaborar obsessivamente seus contos.
Entre os elementos fantásticos, como a ruptura do princípio de causalidade, do tempo, do espaço, da dualidade sujeito/objeto, sobressai o tema da metamorfose.
Esta é central em "Os Três Nomes de Godofredo", "Teleco, o Coelhinho", "O Pirotécnico Zacarias" e outros. Não deixa de caracterizar a personagem Bárbara, que incorpora tudo o que deseja, o mar, o navio, transformando-se em mulher monstruosa.
Tal voracidade é vertiginosa como a construção de uma Babel moderna em "O Edifício". Nesse conto, em que a linguagem combina registro bíblico e registro protocolar, um engenheiro, João Gaspar, desdenhando uma antiga profecia do Conselho Superior de Fundação, enceta a construção do "maior arranha-céu de que se tinha notícias". Quando chega ao octingentésimo andar, tomado de um tédio sem fim, resolve interromper o empreendimento, mas em vão: perde o controle sobre a ação dos operários, doentiamente empenhados em continuar a obra e cada vez mais numerosos, sem sequer exigir remuneração.
Os discursos de João Gaspar para dissuadir os trabalhadores de seu intento acabam, de tão reiterados, por fortalecê-los ainda mais. A oratória contraria sua finalidade original e torna-se fórmula encantatória, a que os peões se acostumam e de que necessitam para sua labuta infinita. Porque o tédio domina e rotiniza tudo, até o insólito, qualquer fala se engessa, qualquer espanto é desautorizado.
Há em muitas dessas narrativas uma espécie de circularidade mítica, em que não cabem tempo histórico ou individuação (muitos personagens nem têm passado, nem mesmo forma humana).
Sendo mais propriamente tipos, sem muita espessura psicológica, os seres de Rubião estão condenados a um desejo ilimitado, a um fazer ilimitado, a metamorfoses sucessivas, que não escondem a fragilidade da condição humana.
Em "O Ex-Mágico da Taberna Minhota", vemos um homem lamentar-se de não ter criado um mundo mágico antes de agonizar no funcionalismo público. Prestidigitador, era capaz de tirar qualquer coisa de seu bolso: animais, iguarias, pessoas, objetos. Enfadado, não suportando mais a rotina de suas pirotecnias, corta o próprio braço, mas este renasce. Quer se matar, e isso não é possível. Parece eterno. Ouvindo alguém dizer que ser funcionário público é suicidar-se aos poucos, emprega-se numa secretaria do Estado. Nesse conto, em que a melancolia é nota dominante, a falta e a hipérbole, o cotidiano e o fantástico têm uma triste equivalência.


Livro: Contos Reunidos Autor: Murilo Rubião Lançamento: Ática Quanto: R$ 22,50 (280 págs.)


Texto Anterior | Próximo Texto | Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Agência Folha.