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TEATRO - ARTIGO
Ellen Stewart é a alma do teatro americano
GERALD THOMAS
em Nova York
"Hi honey, come in!", a voz grita lá de dentro. São 20h e Ellen Stewart está deitada em sua cama.
Exausta, ela acaba de voltar de
uma viagem em que visitou seis
países, estreou três espetáculos,
fez palestras, deu workshops e entrevistas e foi assunto de um documentário na Coréia.
Desembarcou em Nova York às
17h e às 19h já estava na frente de
uma platéia, tocando seu sino de
cobre e anunciando um dos cinco
espetáculos ora em cartaz no La
MaMa ETC, na rua 4 do East Village.
"A santa está de volta", brinca
Raymond, autor teatral do Missouri e bilheteiro do teatro há 30
anos. E quando a "santa" retorna, o ritmo do teatro volta a ser
frenético. Ellen fala com pelo menos uma dúzia de pessoas no telefone da própria bilheteria.
O público que se aperta no pequeno saguão fica atônito ao entreouvir uma conversa entre a
"santa" e um poderoso crítico
teatral: "Não quero você vendo
esse espetáculo!!! Por favor, não
venha!".
Ellen está possessa porque, na
sua ausência, um espetáculo foi
trazido para um dos espaços e ele
não está à altura do que ela considera ser experimental. "Isso é coisa da gorda", se referindo a uma
ex-subordinada que produziu o tal
show.
Na bilheteria, Ellen ainda faz a
revisão de um texto, checa a lista
de convidados, se despede de seu
"staff" e sobe para o seu apartamento.
Como eu faço há quase 20 anos,
subo a escadaria interminável para o seu apartamento, com cautela, para não atrapalhar os espetáculos em andamento.
A escada passa bem pelas cabines de luz e som de dois teatros.
Abro sua porta com um certo receio, pois seu cachorro (uma espécie de tapete sujo) adora morder o
calcanhar de quem entra.
Seu quarto é o menor aposento
desse apartamento, que mais parece um museu de suas andanças,
com milhares de objetos e papéis
empilhados por todos os cantos.
São máscaras africanas, tambores
asiáticos, sinos, marionetes balinesas, peles, carcaças de objetos
de Kabuki, esculturas de Tadeuz
Kantor, chifres, fotos, livros e mal
se consegue espaço para passar.
"Hi honey, I'm here!", ela grita,
competindo com o som altíssimo
da televisão.
Ao vê-la deitada, de short e sutiã,
coberta por um lençol, seus braços
estendidos e o sorriso de um adolescente plantado nessa cara linda
de 78 anos (e 14 infartos), fico visivelmente comovido.
"Hi honey, Mama loves you",
ela me abraça com força e cochicha no meu ouvido:"And Mama
needs your help".
Um abraço depois de algumas
semanas sem nos vermos é tão forte que parece ser uma despedida
em vez de um reencontro. Como
acontece há tantos anos, sento na
beirada da cama, comovido até as
lágrimas, com uma pedra presa no
meio da minha garganta.
"Amanhã preciso ir a Chicago.
O meu mais velho está com câncer", ela diz enquanto aperta minha mão. "Mas você acabou de
chegar! Descansa por uns dias!",
eu digo, apreensivo com mais uma
viagem. "Ele precisa de mim",
ela responde, certa do que vai fazer. "Como posso ajudar?", pergunto. A pergunta fica sem resposta e Ellen, visivelmente perturbada, passa a mão pelos cabelos
brancos encaracolados.
"Quer que eu faça um chá?",
pergunto, sabendo que a resposta
vai aliviar o ambiente. O clima está
tenso porque a situação financeira
está crítica.
"Crítica como nunca esteve, honey", ela afirma. "Estão cortando
tudo, tudo." A prefeitura está reformando seu maior teatro, o
Anexo, e quer cobrar por isso.
"Que absurdo. Eu transformei essa região inteira numa
off-off-Broadway e agora, que isso
aqui é um sucesso, vem esse prefeito de merda me explorar."
Ellen se levanta e, em meio a um
triste discurso, vai entusiasmada
me mostrar a dezena de sabores
novos de chás que trouxe de sua
viagem.
Ellen se comporta como uma
mãe de santo. Aliás, é isso que ela é
um pouco. Uma mistura de negra
com índia e judia, Ellen Stewart
representa a própria integração de
raças e estilos, assim como o teatro dela.
Desde que fui apresentado a ela
pela minha outra "mama", Ruth
Escobar, penso em Ellen Stewart
todos os dias da minha vida. E não
estou sozinho. "Oitenta por cento
do teatro americano vem do La
MaMa", diz Harvey Fierstein, autor da "Torch Song Trilogy" e
que hoje se dedica a ser ator em
Hollywood.
"Se tivéssemos que resumir a
duas palavras toda a história do
teatro americano, diríamos simplesmente La MaMa", diz Philip
Glass, que começou sua carreira
no porão desse prédio, há mais de
30 anos, quando o grupo do qual
era compositor, o Mabou Mines,
literalmente morava aqui.
"Todo mundo saiu daqui", diz
Andrej Serban, o geniozinho romeno que Ellen arrancou das
mãos assassinas do ditador Ceaucescu e trouxe para Nova York nos
anos 70.
Peter Brook fez aqui seu primeiro espetáculo com Jerzy Grotowski, a quem a "Mama" arrancou
das mãos da junta polonesa, junto
com Tadeuz Kantor, o legendário
criador do Cricot 2 Theater.
Ellen Stewart é a alma, a "dama" do teatro americano, título
que pode vir como um choque pra
quem a vê, às 7h, todos os dias,
varrendo as escadas e a calçada do
seu teatro, mudando uma lâmpada ou retocando a vasta parede coberta com recortes de críticas de
todos os jornais mais conceituados do mundo.
"Emigrando para Nova York de
Chicago, nos anos 50, como estilista de maiôs de banho pra loja
Sacks na 5ª Avenida, Ellen se envolveu com o teatro por meio de
um grupo de amigos que não conseguiam encenar suas peças, por
serem considerados "extremados
demais".
Com seu parco salário, Ellen
abriu uma pequena sala de espetáculos num subsolo da 2ª Avenida,
o "Cafe La MaMa" .
Foi lá que, um dia, um jovem e
anônimo Sam Sheppard bateu em
sua porta, dizendo: "Sou poeta e
gosto de rock. Posso montar um
espetáculo?".
E foi lá que um jovem Charles
Ludlam (falecido autor de Irma
Vap) bateu se dizendo portador de
umas idéias bem "ridículas" para
o teatro.
Outro jovem, um órfão brechtiano, chamado Joseph Papp, lá fez
um discurso inflamado, que lhe
rendeu uma performance. Papp,
que acabou sendo o aclamado
fundador do Public Theater e do
New York Shakespeare Festival,
dizia que os americanos precisavam parar de se render ao estilo
"britânico" de interpretação dos
clássicos e inventar seu próprio.
Nos anos que se seguiram, os
nomes não foram poucos: Andy
Warhol, Samuel Beckett, Julian
Beck, Joseph Chaikin, Andre Gregory, Bob Wilson, Richard Foreman, Sankai Juku, Merce Cunningham, Susuki, Richard Scheckner,
Ping Chong e os brasileiros Denise
Stocklos, Cia de Ópera Seca e
George Takla.
O que esses nomes todos têm em
comum? Nada. O nome "La MaMa" corresponde justamente ao
amor incondicional, apartidário,
de uma mãe.
Ellen sabia que o final de milênio
traria uma séria disputa de estilos,
e que ela seria testemunha, produtora e maior incentivadora de um
teatro não-verbal, que pudesse falar todas as línguas e unir todas as
linguagens, mover todas as montanhas.
Do rompimento do Group Theater e das teorias de Strasberg ao
fim do sonho de Julian Beck e seu
Living Theater, Ellen Stewart testemunhou o colapso e o renascimento de vários teatros e todos,
absolutamente todos, receberam
dela, como receberão sempre, um
sorriso maternal, um abraço sincero e uma frase estarrecedora e
inesquecível: "Hi honey, Mama
loves you. Welcome home".
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