São Paulo, sábado, 16 de maio de 1998

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TEATRO - ARTIGO
Ellen Stewart é a alma do teatro americano

GERALD THOMAS
em Nova York

"Hi honey, come in!", a voz grita lá de dentro. São 20h e Ellen Stewart está deitada em sua cama. Exausta, ela acaba de voltar de uma viagem em que visitou seis países, estreou três espetáculos, fez palestras, deu workshops e entrevistas e foi assunto de um documentário na Coréia.
Desembarcou em Nova York às 17h e às 19h já estava na frente de uma platéia, tocando seu sino de cobre e anunciando um dos cinco espetáculos ora em cartaz no La MaMa ETC, na rua 4 do East Village.
"A santa está de volta", brinca Raymond, autor teatral do Missouri e bilheteiro do teatro há 30 anos. E quando a "santa" retorna, o ritmo do teatro volta a ser frenético. Ellen fala com pelo menos uma dúzia de pessoas no telefone da própria bilheteria.
O público que se aperta no pequeno saguão fica atônito ao entreouvir uma conversa entre a "santa" e um poderoso crítico teatral: "Não quero você vendo esse espetáculo!!! Por favor, não venha!".
Ellen está possessa porque, na sua ausência, um espetáculo foi trazido para um dos espaços e ele não está à altura do que ela considera ser experimental. "Isso é coisa da gorda", se referindo a uma ex-subordinada que produziu o tal show.
Na bilheteria, Ellen ainda faz a revisão de um texto, checa a lista de convidados, se despede de seu "staff" e sobe para o seu apartamento.
Como eu faço há quase 20 anos, subo a escadaria interminável para o seu apartamento, com cautela, para não atrapalhar os espetáculos em andamento.
A escada passa bem pelas cabines de luz e som de dois teatros. Abro sua porta com um certo receio, pois seu cachorro (uma espécie de tapete sujo) adora morder o calcanhar de quem entra.
Seu quarto é o menor aposento desse apartamento, que mais parece um museu de suas andanças, com milhares de objetos e papéis empilhados por todos os cantos. São máscaras africanas, tambores asiáticos, sinos, marionetes balinesas, peles, carcaças de objetos de Kabuki, esculturas de Tadeuz Kantor, chifres, fotos, livros e mal se consegue espaço para passar. "Hi honey, I'm here!", ela grita, competindo com o som altíssimo da televisão.
Ao vê-la deitada, de short e sutiã, coberta por um lençol, seus braços estendidos e o sorriso de um adolescente plantado nessa cara linda de 78 anos (e 14 infartos), fico visivelmente comovido.
"Hi honey, Mama loves you", ela me abraça com força e cochicha no meu ouvido:"And Mama needs your help".
Um abraço depois de algumas semanas sem nos vermos é tão forte que parece ser uma despedida em vez de um reencontro. Como acontece há tantos anos, sento na beirada da cama, comovido até as lágrimas, com uma pedra presa no meio da minha garganta.
"Amanhã preciso ir a Chicago. O meu mais velho está com câncer", ela diz enquanto aperta minha mão. "Mas você acabou de chegar! Descansa por uns dias!", eu digo, apreensivo com mais uma viagem. "Ele precisa de mim", ela responde, certa do que vai fazer. "Como posso ajudar?", pergunto. A pergunta fica sem resposta e Ellen, visivelmente perturbada, passa a mão pelos cabelos brancos encaracolados.
"Quer que eu faça um chá?", pergunto, sabendo que a resposta vai aliviar o ambiente. O clima está tenso porque a situação financeira está crítica.
"Crítica como nunca esteve, honey", ela afirma. "Estão cortando tudo, tudo." A prefeitura está reformando seu maior teatro, o Anexo, e quer cobrar por isso. "Que absurdo. Eu transformei essa região inteira numa off-off-Broadway e agora, que isso aqui é um sucesso, vem esse prefeito de merda me explorar."
Ellen se levanta e, em meio a um triste discurso, vai entusiasmada me mostrar a dezena de sabores novos de chás que trouxe de sua viagem.
Ellen se comporta como uma mãe de santo. Aliás, é isso que ela é um pouco. Uma mistura de negra com índia e judia, Ellen Stewart representa a própria integração de raças e estilos, assim como o teatro dela.
Desde que fui apresentado a ela pela minha outra "mama", Ruth Escobar, penso em Ellen Stewart todos os dias da minha vida. E não estou sozinho. "Oitenta por cento do teatro americano vem do La MaMa", diz Harvey Fierstein, autor da "Torch Song Trilogy" e que hoje se dedica a ser ator em Hollywood.
"Se tivéssemos que resumir a duas palavras toda a história do teatro americano, diríamos simplesmente La MaMa", diz Philip Glass, que começou sua carreira no porão desse prédio, há mais de 30 anos, quando o grupo do qual era compositor, o Mabou Mines, literalmente morava aqui.
"Todo mundo saiu daqui", diz Andrej Serban, o geniozinho romeno que Ellen arrancou das mãos assassinas do ditador Ceaucescu e trouxe para Nova York nos anos 70.
Peter Brook fez aqui seu primeiro espetáculo com Jerzy Grotowski, a quem a "Mama" arrancou das mãos da junta polonesa, junto com Tadeuz Kantor, o legendário criador do Cricot 2 Theater.
Ellen Stewart é a alma, a "dama" do teatro americano, título que pode vir como um choque pra quem a vê, às 7h, todos os dias, varrendo as escadas e a calçada do seu teatro, mudando uma lâmpada ou retocando a vasta parede coberta com recortes de críticas de todos os jornais mais conceituados do mundo.
"Emigrando para Nova York de Chicago, nos anos 50, como estilista de maiôs de banho pra loja Sacks na 5ª Avenida, Ellen se envolveu com o teatro por meio de um grupo de amigos que não conseguiam encenar suas peças, por serem considerados "extremados demais".
Com seu parco salário, Ellen abriu uma pequena sala de espetáculos num subsolo da 2ª Avenida, o "Cafe La MaMa" .
Foi lá que, um dia, um jovem e anônimo Sam Sheppard bateu em sua porta, dizendo: "Sou poeta e gosto de rock. Posso montar um espetáculo?".
E foi lá que um jovem Charles Ludlam (falecido autor de Irma Vap) bateu se dizendo portador de umas idéias bem "ridículas" para o teatro.
Outro jovem, um órfão brechtiano, chamado Joseph Papp, lá fez um discurso inflamado, que lhe rendeu uma performance. Papp, que acabou sendo o aclamado fundador do Public Theater e do New York Shakespeare Festival, dizia que os americanos precisavam parar de se render ao estilo "britânico" de interpretação dos clássicos e inventar seu próprio.
Nos anos que se seguiram, os nomes não foram poucos: Andy Warhol, Samuel Beckett, Julian Beck, Joseph Chaikin, Andre Gregory, Bob Wilson, Richard Foreman, Sankai Juku, Merce Cunningham, Susuki, Richard Scheckner, Ping Chong e os brasileiros Denise Stocklos, Cia de Ópera Seca e George Takla.
O que esses nomes todos têm em comum? Nada. O nome "La MaMa" corresponde justamente ao amor incondicional, apartidário, de uma mãe.
Ellen sabia que o final de milênio traria uma séria disputa de estilos, e que ela seria testemunha, produtora e maior incentivadora de um teatro não-verbal, que pudesse falar todas as línguas e unir todas as linguagens, mover todas as montanhas.
Do rompimento do Group Theater e das teorias de Strasberg ao fim do sonho de Julian Beck e seu Living Theater, Ellen Stewart testemunhou o colapso e o renascimento de vários teatros e todos, absolutamente todos, receberam dela, como receberão sempre, um sorriso maternal, um abraço sincero e uma frase estarrecedora e inesquecível: "Hi honey, Mama loves you. Welcome home".



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