São Paulo, sábado, 16 de junho de 2001

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Kurt Masur rege a Filarmônica de Nova York em SP e no Rio, em sua última temporada frente à orquestra

Mansur, memória e música

ARTHUR NESTROVSKI
ENVIADO ESPECIAL AO MÉXICO

Sobranceiro e enxuto, o maestro vem do alto da escada. Incongruente contra os retângulos de cores fortes ao fundo, nas vastidões do hotel modernista, tem seu caminho cortado por uma banda da polícia mexicana, que cruza com ele na mais absoluta inocência, sem sonhar que o destino lhe reserva esse papel.
"Sua orquestra mudou bastante, de ontem para hoje." Antes que possa responder à direita, uma senhora amorosa já solicita sua atenção à esquerda: "Vim de longe, só para escutar o concerto". Masur, diplomático, humano, agradece. É manhã de sol; ele parece estar de bem com a vida.
Não deve ser tão fácil. Nem para Kurt Masur. Por esses dias, especialmente não para Kurt Masur. Depois de dez anos à frente da Filarmônica de Nova York, o maestro não esconde a tristeza por deixar a orquestra. Critica sem meias palavras a decisão do conselho administrativo de não renovar seu contrato após essa temporada. "Não sou um homem que torne a vida fácil para todo mundo; mas sou, sim, alguém que está sempre em busca da mais alta qualidade."
Com o que ninguém discute. A opinião unânime -dos músicos, dos críticos e das platéias- é de que a Filarmônica está tocando melhor do que nunca. Deu prova disso na noite anterior, na Sala Nezahualcóyotl da Universidade do México, num concerto que inaugurou a temporada latino-americana da orquestra. (A Filarmônica toca em SP -amanhã no Ibirapuera; terça e quarta, na Sala São Paulo, com ingressos esgotados. Quinta no Rio; depois em Santiago e Buenos Aires.)
À beira da piscina, protegido do calor asteca, Masur fala com tranquilidade e franqueza. Jamais pediria demissão da orquestra, à qual se refere com sentimento forte. Que o seu amor não seja necessariamente correspondido só transparece nos comentários que se vai colhendo, aqui e ali. O caso, no mínimo, tem suas complicações. "Quem disse que é preciso mudar de regente depois de dez anos? Há tantos exemplos em contrário. George Szell, com a Orquestra de Cleveland: até hoje a orquestra soa como ele."
Szell regeu em Cleveland desde 1946 até sua morte em 1970. Coincidentemente, seu sucessor foi Lorin Maazel, que assume a Filarmônica de Nova York em 2002. As ironias não são involuntárias: "Já chegamos a esse mesmo nível de conhecimento e estilo. E meu espírito vai continuar com a orquestra. É a minha maior esperança -porque é o único modo de ela manter esse padrão".
Dez anos, para Masur, nem seria tanto. Ele foi diretor da Gewandhaus de Leipzig de 1970 até 1996 e mantém o cargo de regente laureado, único na história da orquestra. Assumiu, "porque era normal", a liderança das manifestações pacíficas pelo fim do regime comunista em 1989, que culminaram com a queda do muro de Berlim. Foi cotado para presidente. Poderia ter sido o Vaclav Havel da Alemanha Oriental, se o país não tivesse deixado de existir como tal, após a unificação.
Em Leipzig conheceu Roberto Minczuk, trompista da orquestra, hoje maestro-assistente da Osesp -e também, em 2000-01, assistente da Filarmônica de NY. "Ele tem potencial para ser um dos grandes maestros do mundo. O som que tira da orquestra deixou os músicos da Filarmônica espantados. Na audição para assistentes, foi miraculoso."
Em julho, Masur estará em SP, para reger a Osesp (dias 12 e 13), que conhece só de gravações, mas descreve como uma boa orquestra. E é preciso imaginar tudo o que esse adjetivo carrega, entoado a seco, com acento alemão, na voz de um músico que já viu tudo, sabe tudo e não deve mais nada a ninguém.
"O que eu quero fazer, nos próximos anos, é ajudar os maestros jovens." Geralmente ficam muito frustrados, "sempre esperando alguém morrer ou ficar doente, para ter uma chance de reger". Em NY, Masur criou um sistema próprio. Os assistentes têm contrato de um ano; depois vão ganhar experiência do jeito que importa: regendo. Voltam à Filarmônica como convidados, mas levam para sempre o som da orquestra na cabeça, como um ideal.
Esse mesmo som que seu criador leva agora consigo para a London Philharmonic Orchestra e a Orchestre National de France. "Quando resolveram que tinha de me aposentar, disse a mim mesmo: eu me recuso a ficar velho. Eu vou em frente." Em Londres regerá uma excelente orquestra, mas padecendo de dificuldades financeiras, como todas as orquestras inglesas. Em Paris, o prognóstico é um pouco melhor, porque a ONF tem uma rádio e um leque maior de opções.
Com ela, Masur não quer menos que "melhorar a vida musical em Paris", perenemente abaixo das outras artes. Já conversou com Pierre Boulez (diretor da Cité de la Musique) e James Conlon (regente da Ópera da Bastille), visando um esforço integrado.
O café de Masur ficou esquecido na mesa, mas não esfria na fornalha natural do ambiente. Ele dá um gole e afrouxa a gravata mexicana de tirinhas. A senhora amorosa não resiste e tira uma foto. Diplomático e humano, ele não chega a sorrir, mas não reclama.
Visto de fora: um homem centrado em suas possibilidades. Sério, sofrido, sabedor. Fala como rege, sem hesitação e sem excesso. Visto de dentro: isto não se vê, se escuta. Tanta experiência nem caberia em duas palavras. As que se tem são Kurt Masur.


Arthur Nestrovski viajou a convite do Citibank


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