São Paulo, sábado, 16 de junho de 2001

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CONCERTO/CRÍTICA

Assombros da Filarmônica no México

DO ENVIADO ESPECIAL AO MÉXICO

A noite gigantesca do México cai sobre a gigantesca Sala Nezahualcóyotl, e o gigantesco espectro de Shostakovich começa a assombrar a platéia fria. A primeira noite de uma turnê nunca é a mais inspirada. Quando se trata de um concerto fechado, como o da última terça, pior ainda. Mas a Filarmônica de Nova York está tocando num nível tão alto, hoje em dia, que essas contingências -turnê, México, platéia- vão se esvaindo em poucos minutos, e o fantasma de Strauss vem logo espantar até a alma mais incrédula do auditório.
Com seu passo um tanto incerto, de cegonha, Kurt Masur entra no palco e se põe à frente da orquestra com simplicidade. Sem batuta. E sem partitura. Rege a "Sinfonia nš 1" de Shostakovich (1906-75) de memória, mas "memória" não é a metáfora mais adequada aqui. Quando se pensa no esplendor e miséria alternados (várias vezes) da vida do compositor na era de Stálin, a "Sinfonia", composta aos 18 anos, ganha outros matizes. Parece mais um anúncio da ambiguidades futuras do que uma exibição de virtuosismo irônico. Ou pelo menos foi assim que Masur regeu, com requintes de futuro e de passado.
A Filarmônica toca tudo com uma elegância sem maneirismos, num estilo de sofisticação direta, onde cada detalhe conta e nenhum vem a mais. "Estilo", aqui, é um dos sinônimos de "verdade". Solistas invariavelmente, quase irritantemente bons. A única trompa perfeita do mundo da música. Corais de sopros e corais de metais, melodias escuras nas cordas: a orquestra não está dando tudo, resiste nalguma medida ao maestro e à música, mas isso também tem suas virtudes.
Outro tipo de distanciamento ou suspensão se ouviu nas "Quatro Últimas Canções" de Strauss (1864-1949). Mais rápidas e leves do que de hábito, ganharam outro encantamento, como se o fim do amor e o fim de tudo já estivessem sendo ouvidos do lado de lá. A soprano Christine Brewer cantou com Masur para Masur; quer dizer, traduziu Strauss para esse registro menos sentimental, menos alpino. Strauss é um limite do kitsch: tocado e cantado assim, leva os sentidos da música até onde podem ir, sem se desfazer em efeitos e açúcares e fanfarronices. Interpretado assim, ele é um dos compositores do nosso tempo, mais até do que do desgraçado seu.
"Till Eulenspiegels lustige Streiche" é de 1895 -53 anos antes das "Últimas Canções". Faz também 53 anos que Masur é regente de orquestra, e a experiência, em música talvez mais que na vida, faz diferença. Não rege nada para fora, não perde um gesto, com uma inteligência tão clara e tão funda que parece natural, simplesmente humana, ao alcance de todos. Mas a música é um caso de vida e morte, não só quando narra a vida e a morte pícaras do cavaleiro Till, mas sempre. A música não é para qualquer um, é só para os humanos, e não é todo dia que a gente chega a tanto.
A Filarmônica de Nova York está no auge. Um auge. Oxalá se conserve assim até o próximo, que já não será com Masur.
(ARTHUR NESTROVSKI)


Orquestra Filarmônica de Nova York
    
Onde: pq. Ibirapuera - pça. da Paz (av. Pedro Álvares Cabral, s/nš)
Quando: domingo, às 11h
Quanto: grátis
Patrocinador: Citibank Na Sala São Paulo: ingressos esgotados




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