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LIVROS/LANÇAMENTOS
"MISTÉRIO-BUFO"
Peça foi escrita em comemoração à Revolução Russa
Delírio de Maiakóvski
chega à língua portuguesa
IRINEU FRANCO PERPÉTUO
FREE-LANCE PARA A FOLHA
Está saindo em português
uma das mais delirantes utopias de Maiakóvski. Coube a
Dmitri Beliaev, russo radicado no
Brasil, a tarefa de traduzir "Mistério-Bufo - Um Retrato Heróico,
Épico e Satírico da Nossa Época".
A peça em versos foi escrita para
celebrar o primeiro aniversário da
Revolução Russa.
Com apoio de Lunatcharski, o
Comissário do Povo para a Instrução, o espetáculo foi ao palco
em Petrogrado, em 1918, não sem
dificuldades. Já se desenhava, à
época, o conflito entre a utopia
maiakovskiana da arte revolucionária com forma revolucionária e
os apologetas do "realismo socialista", que queriam uma arte controlada, limitada e "compreensível para as massas".
Para entender o que escandalizou os proto-stalinistas de plantão, não é preciso nem abrir a edição brasileira de "Mistério-Bufo";
basta olhar a capa, que reproduz
os figurinos desenhados pelo próprio Maiakóvski para a peça, de
uma estilização e geometrismo
que os filiava à corrente construtivista que, mais tarde, seria acusada de "formalista" pelos homens
que geririam a cultura soviética
no sombrio período de Stálin.
E o texto em si, como é ? Se, no
passado, os stalinistas tinham a
tendência de glorificar o Maiakóvski panfletário, e esconder o
cubo-futurista, hoje a tendência
parece inversa: glorificar o Maiakóvski "formalista" e deixar de lado o revolucionário, tido como
"ultrapassado". O fato é que, como assinalou Boris Schnaiderman, não dá para separar um do
outro: "o Maiakóvski futurista,
que usava blusa amarela, é o mesmo poeta da Revolução, consciente e desafiador".
Após um dilúvio (metáfora da
revolução), sobram na Terra sete
pares "puros" (representações de
burgueses, incluindo um mercador russo, um paxá turco e um
francês gordo) e sete pares "impuros" (representando o proletariado, incluindo um carpinteiro,
um sapateiro e um padeiro).
Uma arca é construída para se
enfrentarem os novos tempos.
Inicialmente, os "puros" exploram os "impuros", forçando-os a
construir a arca e apropriando-se
de sua comida pela constituição
de dois regimes políticos: a monarquia absolutista e a república
democrática (o francês vaticina:
"para um a rosca, para outro o
buraco dela. A república democrática é por aí que se revela").
Os "impuros" se rebelam contra
a exploração dos "puros", que são
lançados à água. Sozinho, o proletariado passa primeiro pelo Inferno, quando Belzebu e seus asseclas são ridicularizados pelos "impuros", que parecem ter conhecido na Terra um inferno pior do
que aquele dos diabos.
Dali, passa-se a um Paraíso habitado por Matusalém, Tolstói e
Rousseau e igualmente insatisfatório ("Que chato aqui com vocês"). No final, chega-se à Terra
Prometida, na qual os "impuros"
são recebidos pelas coisas, que declaram não pertencer a ninguém:
"Não há donos. De ninguém nós
somos". E, mais à frente, incitam:
"Peguem! Cheguem sem dor!
Operário, vem! Vem, vencedor".
E é com o proletariado tomando
posse do mundo que termina a
utopia de Maiakóvski, com uma
glorificação do sol ("Com o sol
brinquem. Rolem o sol. Joguem o
jogo do sol") que lembra a célebre
"Extraordinária aventura vivida
por Vladimir Maiakóvski no verão na datcha" ("Brilhar para
sempre,/ brilhar como um farol,/
brilhar com brilho eterno,/ gente
é pra brilhar,/ que tudo mais vá
pro inferno").
Em português, a tradução atingiu padrão de excelência difícil de
igualar com a extraordinária recriação de seus poemas feita pela
trinca Boris Schnaiderman/Augusto e Haroldo de Campos. Beliaev está longe do refinamento
do trio, mas acerta ao tentar vivificar, em português, as hipérboles,
exagero e grandiloquência de um
poeta essencialmente coloquial.
"No futuro, todos que encenarem, desempenharem os papéis,
lerem e imprimirem o "Mistério-Bufo", mudem o conteúdo", escreveu Maiakóvski, no prefácio
da segunda edição da obra, em
1921. "Façam seu conteúdo ficar
contemporâneo, do momento."
Beliaev não vai tão longe, mas tenta aproximações, como traduzir
por Guarulhos e Cubatão os nomes das cidades russas de Shúia e
Ivânovo Voznessensk.
Acerta também ao reproduzir o
estranhamento de Maiakóvski ao
lidar com certas expressões idiomáticas (a solução "porquinhos
molhados", em vez de "pintinhos
molhados", por exemplo, lembra
muito a adotada por Schnaiderman/Campos na tradução do
"Fragmento 3", quando se optou
por "o caso está enterrado" em
vez de "o caso está encerrado").
E se outras soluções (como a
mudança do final de alguns nomes em português, como acontece com as declinações em russo)
não são tão satisfatórias, o texto
não chega a perder a força. Isso
porque a Musa Editora teve o
bom senso de imprimir, ao lado
da tradução, o original, conferindo aos que dominam o russo a
oportunidade de se deleitar com o
que há de intraduzível na linguagem poética de Maiakóvski.
Mistério-Bufo - Um Retrato
Heróico, Épico e Satírico da
Nossa Época
Misteria-Buff
Autor: Vladimir Maiakóvski
Tradutor: Dmitri Beliaev
Editora: Musa
Quanto: R$ 32 (270 págs.)
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