São Paulo, sábado, 16 de junho de 2001

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LIVROS/LANÇAMENTOS

"MISTÉRIO-BUFO"

Peça foi escrita em comemoração à Revolução Russa

Delírio de Maiakóvski chega à língua portuguesa

IRINEU FRANCO PERPÉTUO
FREE-LANCE PARA A FOLHA

Está saindo em português uma das mais delirantes utopias de Maiakóvski. Coube a Dmitri Beliaev, russo radicado no Brasil, a tarefa de traduzir "Mistério-Bufo - Um Retrato Heróico, Épico e Satírico da Nossa Época". A peça em versos foi escrita para celebrar o primeiro aniversário da Revolução Russa.
Com apoio de Lunatcharski, o Comissário do Povo para a Instrução, o espetáculo foi ao palco em Petrogrado, em 1918, não sem dificuldades. Já se desenhava, à época, o conflito entre a utopia maiakovskiana da arte revolucionária com forma revolucionária e os apologetas do "realismo socialista", que queriam uma arte controlada, limitada e "compreensível para as massas".
Para entender o que escandalizou os proto-stalinistas de plantão, não é preciso nem abrir a edição brasileira de "Mistério-Bufo"; basta olhar a capa, que reproduz os figurinos desenhados pelo próprio Maiakóvski para a peça, de uma estilização e geometrismo que os filiava à corrente construtivista que, mais tarde, seria acusada de "formalista" pelos homens que geririam a cultura soviética no sombrio período de Stálin.
E o texto em si, como é ? Se, no passado, os stalinistas tinham a tendência de glorificar o Maiakóvski panfletário, e esconder o cubo-futurista, hoje a tendência parece inversa: glorificar o Maiakóvski "formalista" e deixar de lado o revolucionário, tido como "ultrapassado". O fato é que, como assinalou Boris Schnaiderman, não dá para separar um do outro: "o Maiakóvski futurista, que usava blusa amarela, é o mesmo poeta da Revolução, consciente e desafiador".
Após um dilúvio (metáfora da revolução), sobram na Terra sete pares "puros" (representações de burgueses, incluindo um mercador russo, um paxá turco e um francês gordo) e sete pares "impuros" (representando o proletariado, incluindo um carpinteiro, um sapateiro e um padeiro).
Uma arca é construída para se enfrentarem os novos tempos. Inicialmente, os "puros" exploram os "impuros", forçando-os a construir a arca e apropriando-se de sua comida pela constituição de dois regimes políticos: a monarquia absolutista e a república democrática (o francês vaticina: "para um a rosca, para outro o buraco dela. A república democrática é por aí que se revela").
Os "impuros" se rebelam contra a exploração dos "puros", que são lançados à água. Sozinho, o proletariado passa primeiro pelo Inferno, quando Belzebu e seus asseclas são ridicularizados pelos "impuros", que parecem ter conhecido na Terra um inferno pior do que aquele dos diabos.
Dali, passa-se a um Paraíso habitado por Matusalém, Tolstói e Rousseau e igualmente insatisfatório ("Que chato aqui com vocês"). No final, chega-se à Terra Prometida, na qual os "impuros" são recebidos pelas coisas, que declaram não pertencer a ninguém: "Não há donos. De ninguém nós somos". E, mais à frente, incitam: "Peguem! Cheguem sem dor! Operário, vem! Vem, vencedor".
E é com o proletariado tomando posse do mundo que termina a utopia de Maiakóvski, com uma glorificação do sol ("Com o sol brinquem. Rolem o sol. Joguem o jogo do sol") que lembra a célebre "Extraordinária aventura vivida por Vladimir Maiakóvski no verão na datcha" ("Brilhar para sempre,/ brilhar como um farol,/ brilhar com brilho eterno,/ gente é pra brilhar,/ que tudo mais vá pro inferno").
Em português, a tradução atingiu padrão de excelência difícil de igualar com a extraordinária recriação de seus poemas feita pela trinca Boris Schnaiderman/Augusto e Haroldo de Campos. Beliaev está longe do refinamento do trio, mas acerta ao tentar vivificar, em português, as hipérboles, exagero e grandiloquência de um poeta essencialmente coloquial.
"No futuro, todos que encenarem, desempenharem os papéis, lerem e imprimirem o "Mistério-Bufo", mudem o conteúdo", escreveu Maiakóvski, no prefácio da segunda edição da obra, em 1921. "Façam seu conteúdo ficar contemporâneo, do momento." Beliaev não vai tão longe, mas tenta aproximações, como traduzir por Guarulhos e Cubatão os nomes das cidades russas de Shúia e Ivânovo Voznessensk.
Acerta também ao reproduzir o estranhamento de Maiakóvski ao lidar com certas expressões idiomáticas (a solução "porquinhos molhados", em vez de "pintinhos molhados", por exemplo, lembra muito a adotada por Schnaiderman/Campos na tradução do "Fragmento 3", quando se optou por "o caso está enterrado" em vez de "o caso está encerrado").
E se outras soluções (como a mudança do final de alguns nomes em português, como acontece com as declinações em russo) não são tão satisfatórias, o texto não chega a perder a força. Isso porque a Musa Editora teve o bom senso de imprimir, ao lado da tradução, o original, conferindo aos que dominam o russo a oportunidade de se deleitar com o que há de intraduzível na linguagem poética de Maiakóvski.


Mistério-Bufo - Um Retrato Heróico, Épico e Satírico da Nossa Época
Misteria-Buff
   
Autor: Vladimir Maiakóvski
Tradutor: Dmitri Beliaev
Editora: Musa
Quanto: R$ 32 (270 págs.)




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