São Paulo, sábado, 16 de junho de 2001

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LITERATURA

Escritor argentino faz conferência no Rio e em Brasília e tem seu primeiro livro de poemas publicado no Brasil

Gelman se diz "um poeta sem adjetivos"

DA REPORTAGEM LOCAL

O Brasil paga uma de suas dívidas com a literatura latino-americana com o lançamento da antologia "Amor que Serena, Termina?", do poeta argentino radicado no México Juan Gelman, 70, um dos autores mais lidos da produção poética de seu país e traduzido em mais de dez línguas.
Gelman chegou anteontem ao Brasil para uma conferência no evento Mestres da Literatura Latino-Americana Contemporânea, no Rio e em Brasília, quando estará lançando seu livro, o primeiro publicado no país. A antologia (editora Record) tem tradução de Eric Nepomuceno.
"Oxalá contribua para minar os muros que ainda nos separam. Já fui traduzido em Portugal, mas não é o mesmo", observa o poeta, conhecido pela economia de palavras no que se refere a explicações sobre seu trabalho.
Gelman nasceu em 1930, em Buenos Aires, e estreou em livro 1956, com "Violín y Otras Cuestiones". Sua poesia, de extrema força lírica, já apresentava as marcas de sua permanência: coloquialidade inspirada na fala portenha e no ambiente do tango e imagens de impacto realista.
Nos anos 70, deixa a Argentina, fugindo do regime militar (1976-1983). Agentes da repressão vão procurá-lo em casa e, como não o encontram, sequestram seu filho e sua nora, grávida de oito meses.
Gelman inicia a procura dos familiares vitimados, numa campanha que ainda não teve seu termo. "Nenhum ser humano pode desaparecer no nada. Isso é contra a natureza", disse em entrevista à Folha por e-mail.
(RODRIGO MOURA)

Folha - O sr. diz que escrever é um ato de obsessão, inclusive física. Como se manifesta essa obsessão no seu hábito de trabalho?
Gelman -
Quando algo que não sei o que é me preocupa muito, ouço um ruído no ouvido e fico muito mal-humorado -sei que estou a ponto de escrever. Rondo minha Olivetti mecânica e a miro com certa desconfiança por algumas noites. Quem sabe ela me fará dizer algo. Depois, me atrevo.

Folha - Quais são as influências iniciais de sua poesia?
Gelman -
O argentino Raúl González Tuñon e o peruano César Vallejo. Mas também o tango, a vida nos cafés, a fala das ruas. A subjetividade de cada ser humano é moldada por muitas influências. Essas influências formam um tecido espesso cujos fios se confundem, não podem ser distinguidos.

Folha - Como o sr. vê o intercâmbio da produção literária na América Latina, entre Brasil e hispânicos?
Gelman -
É uma circulação muito deficiente, e isso se agrava nos países hispanófanos em relação ao Brasil. O contrário, ao que parece, também ocorre e acredito não se tratar apenas de uma questão de idioma. A balcanização da América Latina é notória, e iniciativas como o Mercosul, no plano econômico, e as que todos conhecemos no plano político ainda não puderam dobrá-la. O mesmo acontece no plano cultural.

Folha - O sr. sofreu pessoalmente com a brutalidade do regime militar argentino. Como vê o atual momento político em seu país e na América Latina?
Gelman -
Em muito mal estado, com muita deterioração: altíssimos índices de desemprego, miséria e analfabetismo em crescimento, problemas de saúde cada vez mais graves. Sobre tudo isso não pesa apenas o integrismo globalizador que continua esgotando nossos países: pesa também a impunidade que beneficia aqueles que cometeram crimes inauditos sob os regimes militares.
Se é permitido matar e torturar sem punição, por que não se poderá roubar à larga, é o que pensam certos governantes. O ex-presidente Carlos Menem inaugurou na Argentina uma era de alegre corrupção sem contenções e agora está preso. E quantos não estão? E como reparar o dano que causaram?

Folha - Qual é a atual situação do processo de busca que o senhor empreende de seus familiares vitimados pelo regime militar?
Gelman -
Em 1989, pude dar uma sepultura aos restos mortais de meu filho, assassinado pelo regime militar em 1976 depois de seu sequestro. Em março de 2000, graças a uma longa investigação dirigida por minha segunda mulher, Mara la Madrid, pude ver a filha de meu filho, minha neta, pela primeira vez nos 23 anos desde seu sequestro e desaparecimento.
Ainda me falta encontrar os restos mortais de minha nora, María Claudia. Isso depende da vontade política do presidente do Uruguai, Jorge Batlle. Quero que María Claudia tenha sepultura e que seja, assim, devolvida a sua cultura e sua história. Nenhum ser humano pode desaparecer no nada. Isso é contra a natureza.

Folha - O sr. se considera um poeta realista?
Gelman -
Depois de tantos anos de insistência, creio que, de fato, sou um poeta. Sem adjetivos.

Folha - O sr. diz que há uma enorme lacuna entre o que quis dizer e o que escreveu. Como o sr. sublima essa frustração, tão típica da expressão, em termos poéticos?
Gelman -
Essa insatisfação, mais do que uma frustração, eu diria, não se pode sublimar. Empurra a seguir escrevendo para ver se conseguimos surpreender a poesia e agarrá-la por fim.


AMOR QUE SERENA, TERMINA? - De: Juan Gelman. Tradução e seleção: Eric Nepomuceno. Editora: Record. Quanto: R$ 22 (160 págs.).



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