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LITERATURA
Escritor argentino faz conferência no Rio e em Brasília e tem seu primeiro livro de poemas publicado no Brasil
Gelman se diz "um poeta sem adjetivos"
DA REPORTAGEM LOCAL
O Brasil paga uma de suas dívidas com a literatura latino-americana com o lançamento da antologia "Amor que Serena, Termina?", do poeta argentino radicado
no México Juan Gelman, 70, um
dos autores mais lidos da produção poética de seu país e traduzido em mais de dez línguas.
Gelman chegou anteontem ao
Brasil para uma conferência no
evento Mestres da Literatura Latino-Americana Contemporânea,
no Rio e em Brasília, quando estará lançando seu livro, o primeiro
publicado no país. A antologia
(editora Record) tem tradução de
Eric Nepomuceno.
"Oxalá contribua para minar os
muros que ainda nos separam. Já
fui traduzido em Portugal, mas
não é o mesmo", observa o poeta,
conhecido pela economia de palavras no que se refere a explicações
sobre seu trabalho.
Gelman nasceu em 1930, em
Buenos Aires, e estreou em livro
1956, com "Violín y Otras Cuestiones". Sua poesia, de extrema
força lírica, já apresentava as marcas de sua permanência: coloquialidade inspirada na fala portenha e no ambiente do tango e
imagens de impacto realista.
Nos anos 70, deixa a Argentina,
fugindo do regime militar (1976-1983). Agentes da repressão vão
procurá-lo em casa e, como não o
encontram, sequestram seu filho
e sua nora, grávida de oito meses.
Gelman inicia a procura dos familiares vitimados, numa campanha que ainda não teve seu termo.
"Nenhum ser humano pode desaparecer no nada. Isso é contra a
natureza", disse em entrevista à
Folha por e-mail.
(RODRIGO MOURA)
Folha - O sr. diz que escrever é um
ato de obsessão, inclusive física.
Como se manifesta essa obsessão
no seu hábito de trabalho?
Gelman - Quando algo que não
sei o que é me preocupa muito,
ouço um ruído no ouvido e fico
muito mal-humorado -sei que
estou a ponto de escrever. Rondo
minha Olivetti mecânica e a miro
com certa desconfiança por algumas noites. Quem sabe ela me fará dizer algo. Depois, me atrevo.
Folha - Quais são as influências
iniciais de sua poesia?
Gelman - O argentino Raúl González Tuñon e o peruano César
Vallejo. Mas também o tango, a
vida nos cafés, a fala das ruas. A
subjetividade de cada ser humano
é moldada por muitas influências.
Essas influências formam um tecido espesso cujos fios se confundem, não podem ser distinguidos.
Folha - Como o sr. vê o intercâmbio da produção literária na América Latina, entre Brasil e hispânicos?
Gelman - É uma circulação muito deficiente, e isso se agrava nos
países hispanófanos em relação
ao Brasil. O contrário, ao que parece, também ocorre e acredito
não se tratar apenas de uma questão de idioma. A balcanização da
América Latina é notória, e iniciativas como o Mercosul, no plano
econômico, e as que todos conhecemos no plano político ainda
não puderam dobrá-la. O mesmo
acontece no plano cultural.
Folha - O sr. sofreu pessoalmente
com a brutalidade do regime militar argentino. Como vê o atual momento político em seu país e na
América Latina?
Gelman - Em muito mal estado,
com muita deterioração: altíssimos índices de desemprego, miséria e analfabetismo em crescimento, problemas de saúde cada
vez mais graves. Sobre tudo isso
não pesa apenas o integrismo globalizador que continua esgotando
nossos países: pesa também a impunidade que beneficia aqueles
que cometeram crimes inauditos
sob os regimes militares.
Se é permitido matar e torturar
sem punição, por que não se poderá roubar à larga, é o que pensam certos governantes. O ex-presidente Carlos Menem inaugurou na Argentina uma era de
alegre corrupção sem contenções
e agora está preso. E quantos não
estão? E como reparar o dano que
causaram?
Folha - Qual é a atual situação do
processo de busca que o senhor
empreende de seus familiares vitimados pelo regime militar?
Gelman - Em 1989, pude dar
uma sepultura aos restos mortais
de meu filho, assassinado pelo regime militar em 1976 depois de
seu sequestro. Em março de 2000,
graças a uma longa investigação
dirigida por minha segunda mulher, Mara la Madrid, pude ver a
filha de meu filho, minha neta, pela primeira vez nos 23 anos desde
seu sequestro e desaparecimento.
Ainda me falta encontrar os restos mortais de minha nora, María
Claudia. Isso depende da vontade
política do presidente do Uruguai, Jorge Batlle. Quero que María Claudia tenha sepultura e que
seja, assim, devolvida a sua cultura e sua história. Nenhum ser humano pode desaparecer no nada.
Isso é contra a natureza.
Folha - O sr. se considera um poeta realista?
Gelman - Depois de tantos anos
de insistência, creio que, de fato,
sou um poeta. Sem adjetivos.
Folha - O sr. diz que há uma enorme lacuna entre o que quis dizer e o
que escreveu. Como o sr. sublima
essa frustração, tão típica da expressão, em termos poéticos?
Gelman - Essa insatisfação, mais
do que uma frustração, eu diria,
não se pode sublimar. Empurra a
seguir escrevendo para ver se conseguimos surpreender a poesia e
agarrá-la por fim.
AMOR QUE SERENA, TERMINA? - De:
Juan Gelman. Tradução e seleção: Eric
Nepomuceno. Editora: Record. Quanto:
R$ 22 (160 págs.).
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