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São Paulo, segunda-feira, 16 de junho de 2003

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ARGUMENTO

Ninguém pediu uma contrapartida para a arte

INÁCIO ARAUJO
CRÍTICO DA FOLHA

Carlos Diegues levou há pouco tempo "Orfeu" à favela. Refez o caminho de Marcel Camus há quase 50 anos. Esse belo filme faz dos favelados personagens trágicos, e qualquer favelado pode compreender isso.
Ao mesmo tempo, e isso é surpreendente, Diegues se pergunta (Folha de 8/6, pág. 3) sobre a pertinência de encenar "Hamlet" na Rocinha ou exibir "O Ano Passado em Marienbad" no Borel. E por que não? Se Diegues pode levar Orfeu ao morro, por que Shakespeare não poderia ser montado lá mesmo?
Passemos pelas recentes intervenções de Cacá Diegues contra o dirigismo estatal na produção cultural e por sua reivindicação de plena diversidade na produção cinematográfica -com as quais me sinto inteiramente de acordo. Mas o inverso do intervencionismo não é, creio, a exclusão dos pobres e incultos do circuito da "grande cultura".
À primeira vista, parece óbvio que "Marienbad" não seja acessível a esses espectadores. Mas cabe a pergunta: e aos demais, é? Não posso seguir Diegues quando observa essas duas instâncias, morro e cidade, como universos separados. Escreve ele: "Inclusão social é dar (...) a essas populações condições para que se expressem em seu próprio nome, integrando suas manifestações ao conjunto da cultura brasileira, para além dos guetos a que estão confinados, em vez de impor-lhes, goela abaixo, a cultura gentil de nossa boa consciência assistencialista". Com certeza estou perdendo algo do sentido dessa formulação, mas, até onde posso entender, não quer dizer nada.
O que significa dar condições "a essas populações" para que se expressem em seu próprio nome? Qual é esse próprio nome? E acaso não se expressam? Se suas produções hoje se encontram guetificadas, não será, ao menos em parte, porque lhes atribuímos o papel de desenvolver uma cultura à parte e depois constatamos que ela se encontra... à parte, confinada?
O que existe de torto em toda essa história? Por que o cinema, que já representou a ruptura da dicotomia alta cultura/baixa cultura, serve de exemplo dessa partição?
Duvido um pouco de que a política de contrapartidas seja capaz, por si só, de corrigi-la. Mas estará o Estado tão errado assim ao fazer esse tipo de proposta? Aceitemos, como diz Diegues, que "Carandiru" seja "capaz de desbancar o cinema dominante dentro de suas próprias fortalezas multiplex". Mas por que, sendo esse filme financiado pelo Estado, estariam obrigados seus autores a só mostrá-lo nas fortalezas multiplex?
E, sobretudo, o que há de assistencialismo nisso? Em outro lugar, Diegues disse algo como "a contrapartida da arte é a própria arte". A questão é que ninguém pediu contrapartida à arte, e sim a um dinheiro público, o que é bem outra coisa.
Pois incentivos fiscais são dinheiro de que o Estado abre mão. As leis de incentivo têm pilhas de problemas, sabe-se. Um deles não será a reivindicação de contrapartidas sociais a quem se beneficia de financiamento público. Por fim, não chego a compreender por que Diegues vincula dois assuntos que nada têm em comum, pois uma coisa é a discussão sobre dirigismo cultural -e todos sabemos que isso não dá certo. Outra são ações de inclusão a partir de obras financiadas pelo Estado.
Assim como educação básica é obrigação do Estado, cultura básica também devia ser. As pessoas do morro não têm outra natureza nem pertencem a outra civilização. Por que diabo Mozart não seria acessível a quem entende (e sobretudo produziu) Cartola?


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