|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
ARGUMENTO
Ninguém pediu uma contrapartida para a arte
INÁCIO ARAUJO
CRÍTICO DA FOLHA
Carlos Diegues levou há
pouco tempo "Orfeu" à favela. Refez o caminho de Marcel Camus há quase 50 anos. Esse belo
filme faz dos favelados personagens trágicos, e qualquer favelado
pode compreender isso.
Ao mesmo tempo, e isso é surpreendente, Diegues se pergunta
(Folha de 8/6, pág. 3) sobre a pertinência de encenar "Hamlet" na
Rocinha ou exibir "O Ano Passado em Marienbad" no Borel. E
por que não? Se Diegues pode levar Orfeu ao morro, por que Shakespeare não poderia ser montado lá mesmo?
Passemos pelas recentes intervenções de Cacá Diegues contra o
dirigismo estatal na produção
cultural e por sua reivindicação de
plena diversidade na produção cinematográfica -com as quais
me sinto inteiramente de acordo.
Mas o inverso do intervencionismo não é, creio, a exclusão dos
pobres e incultos do circuito da
"grande cultura".
À primeira vista, parece óbvio
que "Marienbad" não seja acessível a esses espectadores. Mas cabe
a pergunta: e aos demais, é? Não
posso seguir Diegues quando observa essas duas instâncias, morro
e cidade, como universos separados. Escreve ele: "Inclusão social é
dar (...) a essas populações condições para que se expressem em
seu próprio nome, integrando
suas manifestações ao conjunto
da cultura brasileira, para além
dos guetos a que estão confinados, em vez de impor-lhes, goela
abaixo, a cultura gentil de nossa
boa consciência assistencialista".
Com certeza estou perdendo algo
do sentido dessa formulação,
mas, até onde posso entender,
não quer dizer nada.
O que significa dar condições "a
essas populações" para que se expressem em seu próprio nome?
Qual é esse próprio nome? E acaso
não se expressam? Se suas produções hoje se encontram guetificadas, não será, ao menos em parte,
porque lhes atribuímos o papel de
desenvolver uma cultura à parte e
depois constatamos que ela se encontra... à parte, confinada?
O que existe de torto em toda essa história? Por que o cinema, que
já representou a ruptura da dicotomia alta cultura/baixa cultura,
serve de exemplo dessa partição?
Duvido um pouco de que a política de contrapartidas seja capaz,
por si só, de corrigi-la. Mas estará
o Estado tão errado assim ao fazer
esse tipo de proposta? Aceitemos,
como diz Diegues, que "Carandiru" seja "capaz de desbancar o cinema dominante dentro de suas
próprias fortalezas multiplex".
Mas por que, sendo esse filme financiado pelo Estado, estariam
obrigados seus autores a só mostrá-lo nas fortalezas multiplex?
E, sobretudo, o que há de assistencialismo nisso? Em outro lugar, Diegues disse algo como "a
contrapartida da arte é a própria
arte". A questão é que ninguém
pediu contrapartida à arte, e sim a
um dinheiro público, o que é bem
outra coisa.
Pois incentivos fiscais são dinheiro de que o Estado abre mão.
As leis de incentivo têm pilhas de
problemas, sabe-se. Um deles não
será a reivindicação de contrapartidas sociais a quem se beneficia
de financiamento público. Por
fim, não chego a compreender
por que Diegues vincula dois assuntos que nada têm em comum,
pois uma coisa é a discussão sobre
dirigismo cultural -e todos sabemos que isso não dá certo. Outra são ações de inclusão a partir
de obras financiadas pelo Estado.
Assim como educação básica é
obrigação do Estado, cultura básica também devia ser. As pessoas
do morro não têm outra natureza
nem pertencem a outra civilização. Por que diabo Mozart não seria acessível a quem entende (e
sobretudo produziu) Cartola?
Texto Anterior: Mônica Bergamo Próximo Texto: 50ª Bienal de Veneza: Pintura dos últimos 40 anos vem a SP em 2004 Índice
|