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São Paulo, segunda-feira, 16 de junho de 2003

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NELSON ASCHER

A revolução permanente

Uma autêntica revolução está alterando, embora por enquanto só no mundo de língua inglesa, o modo como circulam as notícias. Trata-se da assim chamada blogosfera, termo derivado de "blog", que é uma corruptela de "web log", ou seja, na sua forma mais simples, um "site" pessoal ou diário on-line acessível ao público que alguém (um "blogger") mantém na internet. Se no Brasil os blogs ainda se confinam majoritariamente a essa definição, na anglosfera eles ganharam asas e, convertendo-se numa nova instituição, são a principal inovação nos meios de comunicação desde que, com a TV a cabo, surgiram os canais dedicados ao noticiário ininterrupto.
A chuva radiativa que, fertilizando o solo virtual, gerou essa safra mutante de cogumelos, foi a que desabou sobre os EUA em 11 de setembro de 2001. Entre as populações do ocidente industrializado, se são, por um lado, as da Europa continental as que mais respeitam a autoridade do Estado e as instâncias educacionais, partidárias ou midiáticas que lhes dizem o que pensar, é, por outro, nas nações anglo-saxãs que se encontrarão as que, mais desconfiadas, rejeitam as relações hierárquicas e unidirecionais de poder.
Nos casos mais extremos, tal desconfiança desemboca na paranóia de anarquistas que, sem ideologia definida, vêem em toda parte os helicópteros negros de um poder estatal que conspira contra as liberdades individuais. Para a maioria dos anglo-saxões, porém, ela se traduz tanto no hábito saudável de contrapor uma instituição a outra, de modo que, sob a supervisão dos cidadãos, elas se limitem e equilibrem mutuamente, como no costume de conferir, em fontes diversas e mesmo contraditórias, as informações recebidas.
O que jornalistas e comentaristas profissionais ou amadores descobriram é que, diferentemente do que sucede no universo do papel impresso, os internautas são capazes de "acessar" com a mesma facilidade o site de um grande jornal e o de um indivíduo desconhecido. Assim, é quase como se todos tivessem voltado ao ponto de partida e a competição geral recomeçasse do zero. Se a situação não chega a ser tão democrática, é verdade que, na "world wide web", os desníveis de poder e influência minguaram bastante. Não que isso vá necessariamente durar, mas o momento, propício aos espíritos empreendedores, é de redefinições e de reajustes. Nos EUA, o terreno para a blogosfera foi preparado por outra singularidade nacional: os comentaristas radiofônicos que, sobretudo de manhã, hora dos engarrafamentos, ocupam as extremidades do espectro político deixadas vagas pela grande mídia eletrônica.
A facilidade de acesso, no entanto, não explica tudo. A imprensa dos EUA está passando há anos por uma crise de credibilidade cuja gota d'água foi o caso Clinton/Monica Lewinski. Em vez de simplesmente aceitar ou rejeitar a versão do escândalo fornecida pela TV e pelos jornais, o americano médio começou a suspeitar das intenções destes, sem que isso o levasse a acreditar no presidente. E, como o próprio tamanho das empresas fornecedoras de notícias as tornava refratárias ao "feedback" de consumidores individuais, salvo nas raras ocasiões em que estes conseguiam formar um grupo de pressão, criou-se a demanda, logo satisfeita pela tecnologia, de um recurso que, mais do que supervisionar o noticiário, permitisse-lhes interagir com ele.
Se, além de sua capacidade investigativa, uma das vantagens daquelas organizações era seu acesso quase exclusivo a um dispendioso repertório informativo que se materializava em pesquisadores, arquivos etc., a internet, por seu turno, colocou à disposição de quem quer que seja um gigantesco banco de dados que está, ao mesmo tempo, em toda parte e em parte alguma, podendo, ademais, ser consultado, de forma prática e econômica, 24 horas por dia. Ainda há pouco, o leitor ou espectador não tinha outra opção que a de aceitar passivamente o grosso das informações, fosse porque não havia onde conferi-las, fosse porque, mesmo quando houvesse, fazê-lo com cada detalhe era demasiadamente trabalhoso. Mas agora, com os mecanismos de busca ("search engines") disponíveis, não há minúcia cuja fidedignidade não possa ser avaliada em minutos, e o sistema de "links ", que permitem, com um "click" do mouse, acessar a fonte original, dissipam muito do "ruído" gerado em outros meios pelo "diz-que-diz" e por informações de terceira ou quarta mão sucessivamente filtradas e deformadas.
Se bem que o assunto seja vasto (e pretendo continuar a abordá-lo na próxima coluna), o essencial é o seguinte: há hoje, escrevendo quase sempre em inglês, centenas de bloggers políticos que, amigável, crítica ou antagonicamente interconectados, debatem, informam, desinformam e opinam sobre os temas do presente numa rede da qual jornais e organizações como o "New York Times" e a CNN se sentem forçados a participar em pé de relativa e talvez temporária igualdade. Os blogs dos americanos Glenn Reynolds (Instapundit), Steven Den Beste (USS Clueless), Charles Johnson (Little Green Footballs ou LGF), do inglês radicado nos EUA Andrew Sullivan e do australiano Tim Blair, para ficarmos nos mais famosos (e trate, caro leitor, de usar seu "search engine" para acessá-los), são frequentados diariamente por centenas de milhares de leitores. Que as chaves para o sucesso ou, pelo menos, para a sobrevivência na blogosfera sejam credibilidade e agilidade instaura nela um ambiente darwiniano de seleção natural, também conhecida como mercado livre de idéias, cuja única constante é a perpétua mudança, ou melhor, a revolução permanente.


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