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Gloria Kalil quer reformar o homem brasileiro
ARNALDO JABOR
da Equipe de Articulistas
Li o livro "Chic Homem"
de Gloria Kalil. Todas as mulheres deviam dar esse tratado
de bom gosto a seus maridos,
esses seres de bigode, barriga e
bermudão que elas amam. Tenho sido um mal-ajambrado
pela vida afora, mas, doravante, quero mudar.
Quero ser elegante. Não mais
usarei meias pretas em sapatos
brancos, nem meias brancas
em sapatos pretos. Quero o
"ton sur ton" da suave harmonia com a paisagem em torno.
Não quero mais gritar em aeroportos, nem rir alto nas
churrascarias, entre chuletas e
picanhas. Quero ser fino, não
quero mais fitar as mulheres
com olho cúpido, medindo a
amplidão de suas bundas.
Quero um "detachment" sofisticado, como se os prazeres
me causassem um certo fastio.
Mas quero roupas lindas, quero gravatas inimagináveis,
muito além das Kenzo, Ermenegildo Zegna.
Quero mais, quero uma gravata transcendental, estrelada.
Quero dar laços "four in hand"
ou laços "semi-windsor" ou
ainda borboletas que voem e
pousem entre seios decotados e
me façam voltar fielmente para o colarinho. Quero ser temido (e amado) e poder abrir
mão, delicadamente, de usar
minha tremenda violência de
James Bond -eu, 008, lutando
com punhais e smoking impecável.
Quero ser esguio e "debonaire", como quem acaba de largar um bastão de golfe, depois
de um "hole one". Quero ser
gentil com "caddies" e rude
com "lords" e "financiers".
Quero espreguiçar em clubes
de cavalheiros, lendo o "Foreign Affairs" com displicência, sob o olhar compassivo dos
grisalhos mordomos. Não que
eu queira ser um ocioso -apesar de meus "rusty nails" no
"Friar's Club", apesar de minha cadeira cativa no "Harry's
Bar" de Veneza.
Quero mostrar que também
trabalho com vigor e que o
vento de plataformas de petróleo me desfaz o cabelo. Eu, com
a barba levemente crescida e
meu corpo magro e bronzeado
protegido pela capa de neoprene amarelo. Ou então em alto-mar sob os gritos das gaivotas, ao menos de "cardigan"
cinza numa sala de Oxford, a
comentar, entre risos, um pouco de Wittgestein, não a obra
do filósofo, mas as fofocas sobre sua viadagem.
Quero "chambrays", quero
sedas, quero madras, índigos,
panamá, albene cor-de-rosa
ou pele de tubarão.
Quero ser elegante sozinho,
mesmo sem ninguém me ver,
apenas meus espelhos "em
abismo" me rebatendo ao infinito, inumerável, na alta madrugada -com minha suéter
de cashmere rasgado, folheando um livro de Malraux sobre
Goya e ouvindo a "chacona"
da Partita em ré menor, desatento como quem ouve os
"BG's".
Quero ser elegante mesmo na
melancolia, quero ler Cioram
como livro de "auto-ajuda",
tomando com desalento golinhos de Calvados como "chaser" de Metaxa.
Quero ser elegante mesmo na
vergonha, na ignomínia, mesmo em flagrante delito de
adultério. Eu, diante de uma
dama pálida de medo em lingerie, sob a pistola de madrepérola do marido traído, treinado em duelos do Bois de
Boulogne.
E eu trêmulo em cuecas, desde que minhas cuecas sejam
Calvin Klein, cuecas inconsúteis, tênues, vaporosas, sob as
quais possam se adivinhar as
delícias de meu adormecido
membro, pássaro feroz pronto
para o amor ou para a vulgaridade.
Quero fugir em desalinho,
calçando minhas botinhas
Prada, ameaçado pelo "cocu
magnifique", com sua bengala
de castão de prata esculpido
em focinho de galgo -mas
quero que sua dor-de-corno seja densa e discreta, esperando
que eu saia vestindo atabalhoadamente minha jaqueta
Yamamoto para que só então
ele esbofeteie minha bela
amante em calcinhas da "Victoria's Secret".
Quero que ela receba as bofetadas do marido sim, impávida e digna, mas não sem espiar
no espelho, de esguelha, com
uma ponta de chique masoquismo, as gotas negras de rímel que a dor dos tapas fará
correr por suas faces brancas
de pavor e contentamento.
Quero ser elegante nesse país
cafajeste, entre homens de bermuda rosa e camisas verdes ornando barrigas de chopes.
Queria ser elegante, por exemplo, no Congresso -eu, político temido, usando um belíssimo terno "Matsuda" de seda
negra com apliques mínimos
de cor, réstias vermelhas e
azuis. E eu, chiquérrimo na tribuna, discursando sem adjetivos, citando Sêneca, a propósito do superfaturamento de um
canal de esgotos do Piauí.
Eu queria cheirar bem com o
olor do feno de meus celeiros,
da maçã seca de meus pomares. Não quero ser nem pavão
nem camaleão -ou seja, nem
me exibir como um Luís 14,
nem copiar os bofes do Hugo
Boss.
E, mais que tudo, eu não
queria jamais coçar meu saco
em público como proíbe Glorinha, talvez um leve ajeitar de
ovinhos, um suave frêmito discreto na braguilha.
Não queria mais ser grosso e
berrar palavrões ao volante,
nem cantar moças desconhecidas, nem cuspir no chão, nem
fazer xixi na tampa do vaso,
nem falar de boca cheia, nem
mascar palito em público
(muito menos fósforo marca
Olho, nem mesmo o poético
marca Beija-flor).
Não queria mais esquecer de
dar descarga mesmo no mais
sórdido botequim, onde sempre te espera a lembrança de
alguém que ali passou, boiando e te olhando do fundo do
vaso -esse sim, o vestígio do
"outro absoluto".
Quero ser elegante até diante
da morte, deixando-a se manifestar, deixando o tempo envelhecer os sulcos de meu rosto
como envelheceu lindamente
minha pasta de crocodilo, meu
paletó de "corduroy" ou meu
Montrachet 1961.
Quero tanta coisa, meu
amor, quero você, mulher intemporal, vestida por véus de
fadas trazidos no bico de andorinhas, junto a mim, respirando no meu ritmo.
Juntos, numa sacada de New
York, poderemos olhar com
elegância e resignação mesmo
a chegada das nuvens de "antrax" do Iraque ou o crepúsculo dourado do Paquistão, que
farão toda a gente da cidade
(mesmo na Armani da Madison Avenue, ai de nós!) esvair-se em hemoptises infinitas, ao som de um último quarteto de Beethoven, sepultando
nosso sonho de charme ocidental.
E pensaremos então que talvez a suprema elegância fosse
não termos existido...
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