São Paulo, terça, 16 de junho de 1998

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Gloria Kalil quer reformar o homem brasileiro

ARNALDO JABOR
da Equipe de Articulistas

Li o livro "Chic Homem" de Gloria Kalil. Todas as mulheres deviam dar esse tratado de bom gosto a seus maridos, esses seres de bigode, barriga e bermudão que elas amam. Tenho sido um mal-ajambrado pela vida afora, mas, doravante, quero mudar.
Quero ser elegante. Não mais usarei meias pretas em sapatos brancos, nem meias brancas em sapatos pretos. Quero o "ton sur ton" da suave harmonia com a paisagem em torno.
Não quero mais gritar em aeroportos, nem rir alto nas churrascarias, entre chuletas e picanhas. Quero ser fino, não quero mais fitar as mulheres com olho cúpido, medindo a amplidão de suas bundas.
Quero um "detachment" sofisticado, como se os prazeres me causassem um certo fastio. Mas quero roupas lindas, quero gravatas inimagináveis, muito além das Kenzo, Ermenegildo Zegna.
Quero mais, quero uma gravata transcendental, estrelada. Quero dar laços "four in hand" ou laços "semi-windsor" ou ainda borboletas que voem e pousem entre seios decotados e me façam voltar fielmente para o colarinho. Quero ser temido (e amado) e poder abrir mão, delicadamente, de usar minha tremenda violência de James Bond -eu, 008, lutando com punhais e smoking impecável.
Quero ser esguio e "debonaire", como quem acaba de largar um bastão de golfe, depois de um "hole one". Quero ser gentil com "caddies" e rude com "lords" e "financiers".
Quero espreguiçar em clubes de cavalheiros, lendo o "Foreign Affairs" com displicência, sob o olhar compassivo dos grisalhos mordomos. Não que eu queira ser um ocioso -apesar de meus "rusty nails" no "Friar's Club", apesar de minha cadeira cativa no "Harry's Bar" de Veneza.
Quero mostrar que também trabalho com vigor e que o vento de plataformas de petróleo me desfaz o cabelo. Eu, com a barba levemente crescida e meu corpo magro e bronzeado protegido pela capa de neoprene amarelo. Ou então em alto-mar sob os gritos das gaivotas, ao menos de "cardigan" cinza numa sala de Oxford, a comentar, entre risos, um pouco de Wittgestein, não a obra do filósofo, mas as fofocas sobre sua viadagem.
Quero "chambrays", quero sedas, quero madras, índigos, panamá, albene cor-de-rosa ou pele de tubarão.
Quero ser elegante sozinho, mesmo sem ninguém me ver, apenas meus espelhos "em abismo" me rebatendo ao infinito, inumerável, na alta madrugada -com minha suéter de cashmere rasgado, folheando um livro de Malraux sobre Goya e ouvindo a "chacona" da Partita em ré menor, desatento como quem ouve os "BG's".
Quero ser elegante mesmo na melancolia, quero ler Cioram como livro de "auto-ajuda", tomando com desalento golinhos de Calvados como "chaser" de Metaxa.
Quero ser elegante mesmo na vergonha, na ignomínia, mesmo em flagrante delito de adultério. Eu, diante de uma dama pálida de medo em lingerie, sob a pistola de madrepérola do marido traído, treinado em duelos do Bois de Boulogne.
E eu trêmulo em cuecas, desde que minhas cuecas sejam Calvin Klein, cuecas inconsúteis, tênues, vaporosas, sob as quais possam se adivinhar as delícias de meu adormecido membro, pássaro feroz pronto para o amor ou para a vulgaridade.
Quero fugir em desalinho, calçando minhas botinhas Prada, ameaçado pelo "cocu magnifique", com sua bengala de castão de prata esculpido em focinho de galgo -mas quero que sua dor-de-corno seja densa e discreta, esperando que eu saia vestindo atabalhoadamente minha jaqueta Yamamoto para que só então ele esbofeteie minha bela amante em calcinhas da "Victoria's Secret".
Quero que ela receba as bofetadas do marido sim, impávida e digna, mas não sem espiar no espelho, de esguelha, com uma ponta de chique masoquismo, as gotas negras de rímel que a dor dos tapas fará correr por suas faces brancas de pavor e contentamento.
Quero ser elegante nesse país cafajeste, entre homens de bermuda rosa e camisas verdes ornando barrigas de chopes. Queria ser elegante, por exemplo, no Congresso -eu, político temido, usando um belíssimo terno "Matsuda" de seda negra com apliques mínimos de cor, réstias vermelhas e azuis. E eu, chiquérrimo na tribuna, discursando sem adjetivos, citando Sêneca, a propósito do superfaturamento de um canal de esgotos do Piauí.
Eu queria cheirar bem com o olor do feno de meus celeiros, da maçã seca de meus pomares. Não quero ser nem pavão nem camaleão -ou seja, nem me exibir como um Luís 14, nem copiar os bofes do Hugo Boss.
E, mais que tudo, eu não queria jamais coçar meu saco em público como proíbe Glorinha, talvez um leve ajeitar de ovinhos, um suave frêmito discreto na braguilha.
Não queria mais ser grosso e berrar palavrões ao volante, nem cantar moças desconhecidas, nem cuspir no chão, nem fazer xixi na tampa do vaso, nem falar de boca cheia, nem mascar palito em público (muito menos fósforo marca Olho, nem mesmo o poético marca Beija-flor).
Não queria mais esquecer de dar descarga mesmo no mais sórdido botequim, onde sempre te espera a lembrança de alguém que ali passou, boiando e te olhando do fundo do vaso -esse sim, o vestígio do "outro absoluto".
Quero ser elegante até diante da morte, deixando-a se manifestar, deixando o tempo envelhecer os sulcos de meu rosto como envelheceu lindamente minha pasta de crocodilo, meu paletó de "corduroy" ou meu Montrachet 1961.
Quero tanta coisa, meu amor, quero você, mulher intemporal, vestida por véus de fadas trazidos no bico de andorinhas, junto a mim, respirando no meu ritmo.
Juntos, numa sacada de New York, poderemos olhar com elegância e resignação mesmo a chegada das nuvens de "antrax" do Iraque ou o crepúsculo dourado do Paquistão, que farão toda a gente da cidade (mesmo na Armani da Madison Avenue, ai de nós!) esvair-se em hemoptises infinitas, ao som de um último quarteto de Beethoven, sepultando nosso sonho de charme ocidental.
E pensaremos então que talvez a suprema elegância fosse não termos existido...



Texto Anterior | Próximo Texto | Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Agência Folha.