São Paulo, Quarta-feira, 16 de Junho de 1999
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MARCELO COELHO
Morte é tratada como apertar o "delete" no teclado

É improvável que o mundo acabe com alguma grande catástrofe, invasão alienígena ou ataque de gafanhotos quando se der a virada do milênio, mas a proximidade da data motivou o surgimento de uma nova e terrível praga: a das listas que pululam nos meios de comunicação.
Melhores livros, melhores filmes, personalidades "que marcaram o século": tudo se amontoa como num ritual egípcio, em que o morto era enterrado com seus pertences mais valiosos, defendido assim contra a corrupção, o esquecimento e a miséria.
Numa dessas listas -a da revista "Time", republicada pela Folha na última quinta-feira-, constava um artigo do general Colin Powell, celebrando entre os "heróis e ícones" deste século a multidão anônima dos soldados americanos.
"Unidos pela coragem, eles preservam a liberdade no mundo", diz o texto. Para um não-americano, é difícil reprimir o espanto e a sensação de déjà vu. A retórica da Guerra Fria está de volta; os ataques de napalm sobre o Vietnã são novamente considerados um ato caritativo dos Estados Unidos.
Longe de mim negar o heroísmo dos soldados que desembarcaram na Normandia; também respeito e lamento os milhares de adolescentes que, sem convicção e cheios de medo, morreram no Vietnã para assegurar, estupidamente, a hegemonia norte-americana no cenário internacional.
Mas esse texto de Colin Powell tem conotações ao mesmo tempo irônicas e gravíssimas. Escrito enquanto a Otan bombardeava a Iugoslávia, enaltece uma "coragem" que não mais existe; fica fácil defender ideais sem que nenhum soldado americano se arrisque no conflito. Quanto aos danos colaterais -inocentes mortos por falta de pontaria-, nada significam; interessa confirmar apenas que os Estados Unidos são o Bem, e seus adversários, o Mal.
Milosevic foi escarnecido por se dizer vitorioso. Mas falar na vitória da Otan é igualmente complicado. Não se derrubou o ditador (e, nunca é demais lembrar, no Iraque, Saddam Hussein também continua firme e forte). Pior que isso, não há o menor indício de que, depois desse festival de bombas, a convivência entre albaneses e sérvios se torne possível.
A grande vitória americana é, no fundo, a de se poder revigorar com a bandeira dos direitos humanos a moral do país, cicatrizando de vez a ferida do Vietnã, e azeitando como nunca a indústria armamentista.
Clinton, por sua vez, mostra-se novamente como um líder sério e poderoso. Os mísseis sobre a Iugoslávia foram os rojões com que comemorou o fim do caso Monica Lewinsky.
O que me parece mais espantoso, entretanto -e aqui mudo um pouco de assunto-, é que todos se mostrem horrorizados quando alguns adolescentes americanos saem massacrando seus colegas de escola.
Num país em que o presidente tem a seu dispor toneladas de mísseis e acha lindo dispará-los sobre o cocuruto do inimigo, é no mínimo natural que de vez em quando um nerd de menor estatura se dedique a seus próprios jogos de guerra.
É risível a discussão quanto à influência de filmes e de videogames sobre o comportamento violento dos adolescentes americanos. Não digo que essa influência inexista; tudo leva a crer que, de fato, massacres estetizados, matanças "justas" e assassinatos "limpos", como os que aparecem na TV, são um estímulo à violência.
Mas quem culpabiliza a TV e o cinema ignora o principal. A idéia de violência "limpa", dos adversários eliminados com tiros certeiros, do "happy end" depois de um show de tecnologia, orienta de modo igual o mais severo especialista do Pentágono e o mais pateta dos jogadores de Nintendo.
Uma última observação. Os adolescentes assassinos de Littleton professavam uma espécie de culto à morte; tinham mania de sangue, de Hitler, de destruição. Fico pensando se, com toda essa glamourização da violência, as sociedades de consumo não estão paradoxalmente empenhadas numa negação da morte.
Não se sabe mais lidar com a morte de parentes ou de amigos, por exemplo. O luto e a dor são freneticamente recalcados. Dedicar-se ao entretenimento, aos programas de fitness e a uma dieta saudável vale como indício de virtude pessoal. Quem morre é um fracassado, é um estraga-prazeres, cometeu uma falha ética. A morte não pode existir de fato; é tratada como o equivalente a um "delete" no teclado do computador.
O fascínio "gótico" de certas gangues, o culto ao nazismo e coisas do tipo poderiam então ser entendidos como uma vontade de dar concretude, peso real, àquilo que em meio a tanta violência "de mentirinha" se recalca. Entupidos de saúde e de Corn Flakes, os jovens do Ocidente vão aos shopping centers -as pirâmides do nosso tempo- para assistir a filmes de terror. Há um de múmia entrando em cartaz. Vai ver que é instrutivo.


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