São Paulo, sábado, 16 de julho de 2005

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LIVROS

EROTISMO

Identidade da autora do clássico erótico foi grande mistério literário

"História de O" é um tratado cruel sobre amor e abandono

MARCELINO FREIRE
ESPECIAL PARA A FOLHA

Hoje tem noite da picanha. Explico: li isso, juro, em um panfleto que me deram na rua. E mais: noite do sushi erótico, da lingerie. Noite das colegiais. Não fui. Porque broxaria. Só achei engraçado. Logo eu que estava, coincidentemente, compenetrado com a leitura desta "História de O", de Pauline Réage. A saber: o "grande escândalo literário do século 20". Ou: "Milhões de exemplares vendidos no mundo inteiro", como diz uma cinta, potente, que vem amarrada a cada exemplar. Sei lá, mas desconfio toda vez que um livro é sucesso fácil. No fundo, quem sabe?, uma literatura prostituída. Tô fora. Mas não demorou para eu cair de língua. Perdão, desculpe. É que já nas primeiras linhas fiquei animadinho. Aliás, na contracapa uma expressão me chamou na chincha. "Estilo açougue". Dita pelo Paulo Francis. E mais outra: "Safardagem", que, segundo ele, "está em toda a parte". Eta danado! Só apelando para o lugar-comum: "Venha se deliciar com os prazeres da carne". Essa, extraída do panfleto do nightclub. E a mensagem: "Experimente". Pois é: confesso que foi bom à beça. Gamei em O, a personagem. Uma jovem que se deixa torturar só para atender às ordens do seu amante. Um clássico sadomasoquista.
E tome! As frases são violentas, viris e virulentas. Sangue e mais sangue. Sim, oh, yeah! Eu não parava nem para lamber um café. Um livro poético-galopante. Difícil de largar na estante. Frases e ensinamentos do tipo: "Se você amarrá-la algumas vezes e ela gostar, não serve. É preciso passar o momento em que ela sente prazer, para obter as lágrimas". Epa! Muita atenção: dominadores e dominados que têm muito a ver, creio, com qualquer tipo de relação. Não é à toa que o prefácio fala em "Felicidade na escravidão". Casas-grandes, no livro, trocadas por castelos feéricos, salões ovais. Onde o único e verdadeiro serviço é "se entregar". Vale lembrar: "Suas mãos não lhe pertencerão, e, principalmente, nenhum orifício de seu corpo, que poderemos explorar como quiser".
Pois é: coleira de couro, uma vez ou outra, todo mundo acaba usando. Quero dizer: a leitura do livro me fez pensar sobre escravidões outras. Sobre o que a gente é capaz de cometer quando está amando. O coração que não pára de bater mesmo apanhando. Enfim, um tratado cruel sobre amor, sexo e abandono. É bela, por exemplo, a parte em que o amante de O a deixa sozinha e esperando, por "dez dias ou dez anos". Sei lá. O livro tem uma tristreza assim, escura. Miúda. Que pode ser encontrada no seio de qualquer família. No açougue da esquina. Ou nas melhores casas do ramo.


Marcelino Freire é escritor e autor, entre outros, dos livros "BaléRalé" (Ateliê) e "Contos Negreiros" (Record).

História de O
    

Autor: Pauline Réage
Tradução: Hortencia Santos Lencastre
Editora: Ediouro
Quanto: R$ 39,90 (244 págs.)


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