São Paulo, domingo, 16 de julho de 2006

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FERREIRA GULLAR

A cura pela lei


Não adianta criar uma lei que proíba a morte, mas há quem quase chegue a esse exagero

AS LEIS , no meu entender de leigo, são limites que a sociedade impõe à conduta das pessoas com o propósito de possibilitar a eqüidade e a paz entre elas. A existência das leis pressupõe, portanto, um conflito entre o comportamento do indivíduo e as normas sociais. Se elas são fruto do consenso, como em tese o são, isso não significa que todos a elas obedecem todo o tempo. A lei é, por definição, coercitiva e punitiva. Ela nos obriga a fazer, por sua força, o que fazemos por vontade própria.
Mas nem por isso é ela contrária à natureza humana, o que seria um despropósito: o conflito entre a lei e a conduta ocorre, quando ocorre, porque ela expressa um comportamento correto "ideal", mas que corresponde ao que é comum às pessoas. Melhor dizendo, "ideal" não é o comportamento que a lei determina, mas sua constância, a sua inalterabilidade.
Por isso mesmo, para que seja aplicável e eficaz, a lei deve ajustar-se à natureza humana e às condições objetivas da vida social. Não adianta criar uma lei que proíba as pessoas de morrer, como fez outro um prefeito, usando de ironia, nem que as proíba de engordar ou de se gripar. Não obstante, há legisladores que quase chegam a esse exagero.
A existência de leis pressupõe ter o legislador o direito de limitar a liberdade dos cidadãos, de proibi-los ou obrigá-los a agir desta ou daquela maneira. Em momentos críticos, esse direito pode ser usado para favorecer ao poder do Estado em detrimento das liberdades individuais.
Foi o que ocorreu no Brasil, em 1964, quando os militares depuseram o presidente eleito pelo povo e impuseram ao país normas que lhes permitiram perpetuar-se no poder por mais de 20 anos. Há, portanto, leis justas e injustas, leis legítimas e ilegítimas, o que deixa evidente que o aperfeiçoamento das leis é uma tarefa permanente da cidadania.
E há também leis bem intencionadas, que nem por isso são boas e muitas vezes até provocam efeitos contrários à intenção do legislador. São leis quase sempre motivadas pela presunção de que basta mudar as normas para mudar a realidade. Exemplo desse equívoco é a lei que determina a reserva de vagas, na universidade, para pessoas que se declarem negras, pardas ou índias.
À primeira vista, nada mais justo do que dar àquelas pessoas a oportunidade de fazer um curso superior, mas, quando paramos para examinar a questão, vemos que não se trata de uma medida tão justa quanto parece. Ao tentar corrigir a injustiça social que, historicamente, marcou negros, índios e seus descendentes, no Brasil, criar-se-á um tipo de universitário de segunda classe, que não terá chegado ali por seus méritos; além disso, ao privilegiar etnias, a lei discrimina outros jovens brasileiros pobres por serem brancos.
Tudo isso porque se tenta, usando de um artifício legal, ignorar o verdadeiro problema e sua verdadeira solução, já que a dificuldade para os estudantes pobres -tenham a cor que tenham- chegarem à universidade decorre da baixa qualidade dos ensinos fundamental e médio que lhes são oferecidos. A solução do problema, portanto, está na melhoria do ensino que prepara o jovem para a universidade, e não numa lei feita para atalhar o caminho.
Esse é um aspecto do problema, mas há outros, e um deles é o seguinte: será mesmo uma injustiça se nem todos os jovens do Brasil cursarem a universidade? Será mesmo que só seremos um país justo se, no futuro, nos tornarmos uma nação de 200 milhões de doutores?
Claro que não; o que também não quer dizer que a pobreza e a qualidade do ensino pré-universitário devam continuar a impedir que cheguem à universidade jovens brasileiros pobres, detentores das qualidades que a formação universitária requer. Não se trata, apenas, neste caso, de fazer justiça, mas também de elevar o nível cultural do país e contribuir, desse modo, para o crescimento econômico e a redução das desigualdades.
Outro exemplo este, gaiato, da mania de usar a lei para a "cura" da realidade está sendo votada no Congresso e pretende impedir os pais de darem palmadas nos filhos. Sancionada essa lei, a palmada passará a ser crime, no Brasil. Com isso, o legislador pretende proteger os filhos contra os pais que, como se sabe, são todos sádicos. Pois, de minha parte, confesso que, em determinados momentos, não só as crianças, mas alguns deputados fazem por merecer umas boas palmadas.
As leis podem, sim, contribuir para melhorar a sociedade, mas quando vão às causas reais dos problemas, e não quando procuram mascará-los.


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