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FERREIRA GULLAR
A cura pela lei
Não adianta criar uma lei que proíba a morte, mas há quem quase chegue a esse exagero
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AS LEIS , no meu entender de
leigo, são limites que a sociedade impõe à conduta das
pessoas com o propósito de possibilitar a eqüidade e a paz entre elas. A
existência das leis pressupõe, portanto, um conflito entre o comportamento do indivíduo e as normas
sociais. Se elas são fruto do consenso, como em tese o são, isso não significa que todos a elas obedecem todo o tempo. A lei é, por definição,
coercitiva e punitiva. Ela nos obriga
a fazer, por sua força, o que fazemos
por vontade própria.
Mas nem por isso é ela contrária à
natureza humana, o que seria um
despropósito: o conflito entre a lei e
a conduta ocorre, quando ocorre,
porque ela expressa um comportamento correto "ideal", mas que corresponde ao que é comum às pessoas. Melhor dizendo, "ideal" não é o
comportamento que a lei determina, mas sua constância, a sua inalterabilidade.
Por isso mesmo, para que seja
aplicável e eficaz, a lei deve ajustar-se à natureza humana e às condições
objetivas da vida social. Não adianta
criar uma lei que proíba as pessoas
de morrer, como fez outro um prefeito, usando de ironia, nem que as
proíba de engordar ou de se gripar.
Não obstante, há legisladores que
quase chegam a esse exagero.
A existência de leis pressupõe ter
o legislador o direito de limitar a liberdade dos cidadãos, de proibi-los
ou obrigá-los a agir desta ou daquela
maneira. Em momentos críticos, esse direito pode ser usado para favorecer ao poder do Estado em detrimento das liberdades individuais.
Foi o que ocorreu no Brasil, em
1964, quando os militares depuseram o presidente eleito pelo povo e
impuseram ao país normas que lhes
permitiram perpetuar-se no poder
por mais de 20 anos. Há, portanto,
leis justas e injustas, leis legítimas e
ilegítimas, o que deixa evidente que
o aperfeiçoamento das leis é uma tarefa permanente da cidadania.
E há também leis bem intencionadas, que nem por isso são boas e
muitas vezes até provocam efeitos
contrários à intenção do legislador.
São leis quase sempre motivadas pela presunção de que basta mudar as
normas para mudar a realidade.
Exemplo desse equívoco é a lei que
determina a reserva de vagas, na
universidade, para pessoas que se
declarem negras, pardas ou índias.
À primeira vista, nada mais justo
do que dar àquelas pessoas a oportunidade de fazer um curso superior,
mas, quando paramos para examinar a questão, vemos que não se trata de uma medida tão justa quanto
parece. Ao tentar corrigir a injustiça
social que, historicamente, marcou
negros, índios e seus descendentes,
no Brasil, criar-se-á um tipo de universitário de segunda classe, que
não terá chegado ali por seus méritos; além disso, ao privilegiar etnias,
a lei discrimina outros jovens brasileiros pobres por serem brancos.
Tudo isso porque se tenta, usando
de um artifício legal, ignorar o verdadeiro problema e sua verdadeira
solução, já que a dificuldade para os
estudantes pobres -tenham a cor
que tenham- chegarem à universidade decorre da baixa qualidade dos
ensinos fundamental e médio que
lhes são oferecidos. A solução do
problema, portanto, está na melhoria do ensino que prepara o jovem
para a universidade, e não numa lei
feita para atalhar o caminho.
Esse é um aspecto do problema,
mas há outros, e um deles é o seguinte: será mesmo uma injustiça se
nem todos os jovens do Brasil cursarem a universidade? Será mesmo
que só seremos um país justo se, no
futuro, nos tornarmos uma nação de
200 milhões de doutores?
Claro que não; o que também não
quer dizer que a pobreza e a qualidade do ensino pré-universitário devam continuar a impedir que cheguem à universidade jovens brasileiros pobres, detentores das qualidades que a formação universitária requer. Não se trata, apenas, neste caso, de fazer justiça, mas também de
elevar o nível cultural do país e contribuir, desse modo, para o crescimento econômico e a redução das
desigualdades.
Outro exemplo este, gaiato, da
mania de usar a lei para a "cura" da
realidade está sendo votada no Congresso e pretende impedir os pais de
darem palmadas nos filhos. Sancionada essa lei, a palmada passará a ser
crime, no Brasil. Com isso, o legislador pretende proteger os filhos contra os pais que, como se sabe, são todos sádicos. Pois, de minha parte,
confesso que, em determinados momentos, não só as crianças, mas alguns deputados fazem por merecer
umas boas palmadas.
As leis podem, sim, contribuir para melhorar a sociedade, mas quando vão às causas reais dos problemas, e não quando procuram mascará-los.
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