São Paulo, Sexta-feira, 16 de Julho de 1999
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Kubrick se despede com obra menor


"De Olhos Bem Fechados", que estréia hoje nos Estados Unidos, se perde em sua segunda parte, em que Tom Cruise se torna o personagem principal e não alcança a sutileza da "Traumnovelle", de Schnitzler


AMIR LABAKI
enviado especial a Nova York

Stanley Kubrick (1928-1999) manteve a tradição: é mais um mestre que se despede com uma obra menor, "De Olhos Bem Fechados", que estréia hoje nos EUA e em setembro no Brasil. Foi assim com Griffith e Chaplin, Murnau e Lang, Hitchcock e Truffaut. O legado de Kubrick não se reduz por causa disso.
"De Olhos Bem Fechados" é um caso curiosíssimo dentre as adaptações literárias da filmografia kubrickiana, pela extrema fidelidade com que segue o original, até mesmo no tom fundamentalmente otimista. Segundo os letreiros finais, trata-se de um filme "inspirado" na "Traumnovelle", de Arthur Schnitzler.
Trabalhando ao lado do escritor e roteirista Frederic Raphael, Kubrick transpôs a trama para a Nova York contemporânea.
A sequência dos acontecimentos é em grande medida a mesma do livro, traduzida cinematograficamente sobretudo à moda câmera na mão de "Maridos e Esposas", de Woody Allen.
Dr. Bill e Alice Harford (Tom Cruise e Nicole Kidman), eroticamente amortecidos por nove anos de vida comum, flertam separados numa festa na casa de Victor Ziegler (Sydney Pollack).
No dia seguinte, cobram-se mutuamente, numa conversa franca ao pé da cama, relaxados por um baseado. Provocada pela ingenuidade do marido, Alice confessa ter quase abandonado tudo, inclusive a filha Helena, pelo prazer de uma noite com um oficial da Marinha nas recentes férias da família na praia. Kidman torna esse embate verbal, a um só tempo terno e violento, o ápice do filme.
Bill sai então atrás de uma vingança concreta para o adultério imaginário de Alice. O personagem de Cruise assume o filme, o de Kidman passa a segundo plano, exatamente como no livro, e "De Olhos Bem Fechados" começa a girar em falso.
O confronto do casal é interrompido pela morte de um paciente. Bill vai à casa dele, sendo surpreendido pela declaração de amor de Marion (Marie Richardson), a filha agora órfã que está de casamento marcado.
Estonteado, Bill perambula por Manhattan, encontra uma prostituta (Vinessa Shaw) e é interrompido na hora H por um telefonema. Num clube de jazz, volta a reencontrar o amigo pianista dos tempos da faculdade, Nick Nightingale (Todd Field), que já vira na festa de Ziegler, convencendo-o a levá-lo a uma orgia ultrafechada.
A sequência mais surreal e perturbadora do livro de Schnitzler vira uma paródia involuntária das festas sensuais do Fellini de "Casanova" e "Satyricon", com máscaras venezianas, muita nudez (feminina) e tudo mais. São dramaticamente frustrantes os polêmicos 65 segundos de sexo simulado que exigiram trucagem digital para evitar uma classificação mais restrita da censura. Figuras vestidas e desnudas foram posicionadas atrapalhando a visão das relações sexuais, reduzindo o impacto de uma situação que parece originalmente já pouco excitante.
Para não revelar o resto da trama, basta saber que Bill busca obsessivamente nos dias seguintes desvendar os segredos daquela noitada. O roteiro de Kubrick e Raphael continua respeitando de perto o desenvolvimento da "Traumnovelle", mas explicita em diálogos sentimentos e reflexões tratados com muito maior sutileza pela prosa de Schnitzler.
O fascínio do romance deve-se muito à sua atmosfera onírica. Schnitzler lembra aqui um Kafka erotizado, do qual apenas nos primeiros momentos "De Olhos Bem Fechados" se aproxima.
Schnitzler é um discípulo de Freud e sua "Traumnovelle" é largamente inspirada em "A Interpretação dos Sonhos".
A dívida do cinema de Kubrick para com Freud não pode ser negada. "O Mal-Estar da Civilização" é uma das chaves interpretativas, por exemplo, para a tetralogia da violência -"Glória Feita de Sangue", "Laranja Mecânica", "O Iluminado" e "Nascido para Matar". A força avassaladora do inconsciente, a cisão humana essencial entre os desígnios de Eros e Tanatos, emerge traduzida em combinações perturbadoras de sons e imagens.
Poucos momentos assim marcam "De Olhos Bem Fechados". Há palavras demais, tudo explicando. É um testamento estranho para Kubrick, cineasta maior do mistério e do desassossego.


Avaliação:   

Texto Anterior: Vida Bandida - Voltaire de Souza: A Força
Próximo Texto: Mais uma vez, a América devolve o berro a diretor
Índice

Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Agência Folha.