São Paulo, Sexta-feira, 16 de Julho de 1999
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A CENSURA
Mais uma vez, a América devolve o berro a diretor

GERALD THOMAS
especial para a Folha, em Nova York

Não se iludam. Esse corte de 65 segundos, ou melhor, essa adulteração digital, nada tem a ver com moralismo. Tem a ver com dinheiro. Muito dinheiro.
Sem o corte, o filme teria uma classificação NC-17, ou seja, seria visto por um público menor e teria uma distribuição medíocre.
Com o corte, o filme passa ao R, deixando todos felizes, desde os produtores aos distribuidores e, evidentemente, a enorme classe média americana, que poderá ver, sem maiores perigos, as tão faladas cenas de sexo forte entre Nicole Kidman e seu marido, Tom Cruise.
Se estivesse vivo, será que Stanley Kubrick estaria chutando portas e ameaçando Deus e o mundo, num daqueles não raros ataques frenéticos e paranóicos que acabaram provocando a ruptura entre o genial diretor e a indústria hollywoodiana e o levaram ao auto-exílio na Inglaterra?
Ou será que ele estaria rindo disso tudo, ao se certificar de que dera certo um meticuloso golpe publicitário, muitíssimo bem arquitetado, que visava colocar o lançamento do filme no auge de um longo debate, ora em curso no Congresso e no Senado, sobre o excesso de violência e sexo na TV e nos filmes em geral.
Seja como for, a polêmica em torno do corte é, evidentemente, suficientemente política, mexe em feridas profundas na sociedade americana, e expõe, mais uma vez, a hipocrisia com que este país lida com seus tabus.
Kubrick era avesso a essa hipocrisia, virou as costas para a América e foi-se embora. Toda a sua vida e obra foram envoltas em juras de sigilo total, suas filmagens eram uma espécie de bolha de segredos e mistérios. Kubrick nunca deixou de ser um "enfant terrible", e sua obra poderia ser descrita como sendo um enorme berro de ódio e paixão contra a América que ele deixou.
Mais uma vez, a América lhe devolve o berro. Só que desta vez não mais com aquelas tarjetas negras que cobriam a genitália dos personagens em seus filmes, mas com algo muito mais sedutor, muito mais perverso e irônico: com os 65 segundos cortados, Hollywood estará projetando o filme de Kubrick para o primeiríssimo escalão e, com isso, os milhões de dólares.
Não é à toa que Kubrick não viveu o bastante para presenciar essa palhaçada. Não é à toa que sua última obra se chama "olhos largamente fechados".


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