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A CENSURA
Mais uma vez, a América devolve o berro a diretor
GERALD THOMAS
especial para a Folha, em Nova York
Não se iludam. Esse corte de 65 segundos, ou melhor, essa adulteração
digital, nada tem a ver com moralismo. Tem a ver com dinheiro. Muito
dinheiro.
Sem o corte, o filme teria uma classificação NC-17, ou seja, seria visto
por um público menor e teria uma
distribuição medíocre.
Com o corte, o filme passa ao R,
deixando todos felizes, desde os produtores aos distribuidores e, evidentemente, a enorme classe média
americana, que poderá ver, sem
maiores perigos, as tão faladas cenas
de sexo forte entre Nicole Kidman e
seu marido, Tom Cruise.
Se estivesse vivo, será que Stanley
Kubrick estaria chutando portas e
ameaçando Deus e o mundo, num
daqueles não raros ataques frenéticos e paranóicos que acabaram provocando a ruptura entre o genial diretor e a indústria hollywoodiana e o
levaram ao auto-exílio na Inglaterra?
Ou será que ele estaria rindo disso
tudo, ao se certificar de que dera certo um meticuloso golpe publicitário,
muitíssimo bem arquitetado, que visava colocar o lançamento do filme
no auge de um longo debate, ora em
curso no Congresso e no Senado, sobre o excesso de violência e sexo na
TV e nos filmes em geral.
Seja como for, a polêmica em torno
do corte é, evidentemente, suficientemente política, mexe em feridas
profundas na sociedade americana, e
expõe, mais uma vez, a hipocrisia
com que este país lida com seus tabus.
Kubrick era avesso a essa hipocrisia, virou as costas para a América e
foi-se embora. Toda a sua vida e obra
foram envoltas em juras de sigilo total, suas filmagens eram uma espécie
de bolha de segredos e mistérios. Kubrick nunca deixou de ser um "enfant terrible", e sua obra poderia ser
descrita como sendo um enorme
berro de ódio e paixão contra a América que ele deixou.
Mais uma vez, a América lhe devolve o berro. Só que desta vez não mais
com aquelas tarjetas negras que cobriam a genitália dos personagens
em seus filmes, mas com algo muito
mais sedutor, muito mais perverso e
irônico: com os 65 segundos cortados, Hollywood estará projetando o
filme de Kubrick para o primeiríssimo escalão e, com isso, os milhões de
dólares.
Não é à toa que Kubrick não viveu
o bastante para presenciar essa palhaçada. Não é à toa que sua última
obra se chama "olhos largamente fechados".
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