UOL


São Paulo, sábado, 16 de agosto de 2003

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

WALTER SALLES

Hasta la vista, baby

Era só o que faltava. Se ainda restava alguma dúvida de que política e espetáculo estavam terminalmente interligados, não resta mais.
Considere o circo: uma atriz pornô que quer cobrar impostos sobre implantes de seio; um humorista que quer proibir calças com cortes mais ousados; uma mulher que imita a boneca Barbie e se autopromove em imensos cartazes; o editor da revista "Hustler", que faz a "Playboy" parecer refresco de criança. E Arnold Schwarzenegger.
Toda essa excêntrica fauna concorre, sinal dos tempos, ao governo da sexta maior economia do planeta: o Estado da Califórnia. Reduto democrata há mais de 15 anos, a Califórnia passa por um processo semelhante a um impeachment. Novas eleições devem ocorrer em novembro.
É sintomático que o ator de "Conan, o Bárbaro" e de "Exterminador do Futuro" 1, 2, 3 etc. tenha anunciado sua candidatura para um cargo dessa importância em um programa de trivialidades televisivas. Saiu-se com uma pérola logo na largada: "Candidatar-me foi a decisão mais difícil que tomei depois que resolvi fazer depilação". Indagado sobre qual era sua plataforma política, respondeu: "Ainda não tive tempo para pensar nisso. Estou mais preocupado com o povo". Durma-se com esse barulho.
Se a fronteira entre política e espetáculo diminui cada vez mais, a culpa não é só de Schwarzenegger e afins. Os políticos norte-americanos têm sua parcela de responsabilidade no pedaço. Submetem-se cada vez mais a práticas que eram, até algumas décadas atrás, território dos profissionais do entretenimento. Boa parte do que dizem em público é roteirizado, como num filme de ficção, por uma bateria de escritores. Muitos tomam aulas de dicção e de atuação teatral. Não raro, dão performances em canais de televisão, como Bill Clinton fez ao ir tocar saxofone em um programa durante uma de suas campanhas presidenciais.
É uma estranha inversão: Schwarzenegger pulou na arena política sem roteiro, enquanto os políticos estão cada vez mais acostumados a terem seus gestos determinados por assessores de comunicação e roteiristas. A confusão não pára por aí. Quando o político Bush é fotografado de jaqueta de couro em um avião de caça, como aconteceu nesta semana, tenta aproximar-se da imagem que o público tem dos heróis de filmes de ação. Quando o ator de filmes de ação Schwarzenegger é fotografado abraçando criancinhas e visitando escolas, tenta aproximar-se da imagem que o público tem de um político.
Ambos parecem maus atores, pouco sinceros e mal ensaiados. Por isso é cada vez mais difícil diferenciá-los, tanto nos gestos quanto na retórica vazia. Ponto mais uma vez para Guy Debord, que previu esse caos com anos de antecedência.
 
"Cachorro", média-metragem de José Henrique Fonseca que fazia parte de um longa inspirado em contos de Nelson Rodrigues, surpreendia tanto por sua fluidez narrativa quanto pelo tom adotado, que ia bem além do registro naturalista muitas vezes associado a filmes de cineastas estreantes. Fernanda Montenegro, em participação especial, imprimia esse tom desde o início do filme. Uma narrativa tragicômica, às vezes politicamente incorreta, que falava de coisas sérias sem se levar muito a sério.
O cineasta estabelecia, conscientemente, suas próprias regras do jogo. Os personagens eram arquétipos, com os quais ele jogava de forma livre. "O Homem do Ano", primeiro longa-metragem de José Henrique Fonseca, inspirado no livro "O Matador", de Patrícia Melo, procura seguir no mesmo caminho. O cenário é o subúrbio carioca, mas o olhar não é semidocumental. A profusão de signos aponta de cara para o sentido contrário.
Um jovem à deriva, Maiquel, se torna um assassino profissional ao matar um homem que fazia a lei na região. No início, o personagem é sujeito da ação. Depois, aceita se tornar parte da engrenagem e acaba se enredando nela. É quando a namorada do homem que matou (Natália Lage, surpreendente) surge na sua vida.
Tudo sugere uma estranha sensação de deslocamento, e imagino que o filme faculte, a partir daí, duas leituras diferenciadas. A primeira conclusão possível é de que "O Homem do Ano" é uma leitura estilizada de um universo que não deve ser olhado dessa maneira. A outra é de que "O Homem do Ano" não pretende ser uma visão realista desse mesmo universo. Opta, deliberadamente, por olhá-lo de viés.
Aceita essa tese, cineastas que seguiram caminhos parecidos vêm à cabeça. É o caso de Jean-Pierre Melville, herói fílmico de John Woo, cujos filmes policiais eram quase sempre protagonizados por personagens-arquétipos, aparentemente distanciados da realidade francesa. A cenografia, a maneira como os personagens se vestiam, a ausência de diálogos e de croissants sublinhavam a sensação de não-pertencimento, de inscrição em uma tradição mais próxima dos filmes noir americanos do que dos dramas gauleses da época. O tempo se encarregou de conferir relevância à obra de Melville.
Fico com essa segunda leitura. Ao leitor, a possibilidade de dar sua própria versão.


Texto Anterior: "Escada de Giz": Esboço aparente de espetáculo vence riscos da experimentação
Próximo Texto: Panorâmica - Cinema: Filme sobre Chaplin estréia no Reino Unido
Índice


UOL
Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.