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WALTER SALLES
Hasta la vista, baby
Era só o que faltava. Se ainda
restava alguma dúvida de
que política e espetáculo estavam
terminalmente interligados, não
resta mais.
Considere o circo: uma atriz
pornô que quer cobrar impostos
sobre implantes de seio; um humorista que quer proibir calças
com cortes mais ousados; uma
mulher que imita a boneca Barbie e se autopromove em imensos
cartazes; o editor da revista "Hustler", que faz a "Playboy" parecer
refresco de criança. E Arnold
Schwarzenegger.
Toda essa excêntrica fauna concorre, sinal dos tempos, ao governo da sexta maior economia do
planeta: o Estado da Califórnia.
Reduto democrata há mais de 15
anos, a Califórnia passa por um
processo semelhante a um impeachment. Novas eleições devem
ocorrer em novembro.
É sintomático que o ator de
"Conan, o Bárbaro" e de "Exterminador do Futuro" 1, 2, 3 etc. tenha anunciado sua candidatura
para um cargo dessa importância
em um programa de trivialidades
televisivas. Saiu-se com uma pérola logo na largada: "Candidatar-me foi a decisão mais difícil
que tomei depois que resolvi fazer
depilação". Indagado sobre qual
era sua plataforma política, respondeu: "Ainda não tive tempo
para pensar nisso. Estou mais
preocupado com o povo". Durma-se com esse barulho.
Se a fronteira entre política e espetáculo diminui cada vez mais,
a culpa não é só de Schwarzenegger e afins. Os políticos norte-americanos têm sua parcela de
responsabilidade no pedaço. Submetem-se cada vez mais a práticas que eram, até algumas décadas atrás, território dos profissionais do entretenimento. Boa parte do que dizem em público é roteirizado, como num filme de ficção, por uma bateria de escritores. Muitos tomam aulas de dicção e de atuação teatral. Não raro, dão performances em canais
de televisão, como Bill Clinton fez
ao ir tocar saxofone em um programa durante uma de suas campanhas presidenciais.
É uma estranha inversão:
Schwarzenegger pulou na arena
política sem roteiro, enquanto os
políticos estão cada vez mais
acostumados a terem seus gestos
determinados por assessores de
comunicação e roteiristas. A confusão não pára por aí. Quando o
político Bush é fotografado de jaqueta de couro em um avião de
caça, como aconteceu nesta semana, tenta aproximar-se da
imagem que o público tem dos heróis de filmes de ação. Quando o
ator de filmes de ação Schwarzenegger é fotografado abraçando
criancinhas e visitando escolas,
tenta aproximar-se da imagem
que o público tem de um político.
Ambos parecem maus atores,
pouco sinceros e mal ensaiados.
Por isso é cada vez mais difícil diferenciá-los, tanto nos gestos
quanto na retórica vazia. Ponto
mais uma vez para Guy Debord,
que previu esse caos com anos de
antecedência.
"Cachorro", média-metragem de
José Henrique Fonseca que fazia
parte de um longa inspirado em
contos de Nelson Rodrigues, surpreendia tanto por sua fluidez
narrativa quanto pelo tom adotado, que ia bem além do registro
naturalista muitas vezes associado a filmes de cineastas estreantes. Fernanda Montenegro, em
participação especial, imprimia
esse tom desde o início do filme.
Uma narrativa tragicômica, às
vezes politicamente incorreta,
que falava de coisas sérias sem se
levar muito a sério.
O cineasta estabelecia, conscientemente, suas próprias regras
do jogo. Os personagens eram arquétipos, com os quais ele jogava
de forma livre. "O Homem do
Ano", primeiro longa-metragem
de José Henrique Fonseca, inspirado no livro "O Matador", de
Patrícia Melo, procura seguir no
mesmo caminho. O cenário é o
subúrbio carioca, mas o olhar
não é semidocumental. A profusão de signos aponta de cara para
o sentido contrário.
Um jovem à deriva, Maiquel, se
torna um assassino profissional
ao matar um homem que fazia a
lei na região. No início, o personagem é sujeito da ação. Depois,
aceita se tornar parte da engrenagem e acaba se enredando nela. É
quando a namorada do homem
que matou (Natália Lage, surpreendente) surge na sua vida.
Tudo sugere uma estranha sensação de deslocamento, e imagino
que o filme faculte, a partir daí,
duas leituras diferenciadas. A primeira conclusão possível é de que
"O Homem do Ano" é uma leitura estilizada de um universo que
não deve ser olhado dessa maneira. A outra é de que "O Homem
do Ano" não pretende ser uma visão realista desse mesmo universo. Opta, deliberadamente, por
olhá-lo de viés.
Aceita essa tese, cineastas que
seguiram caminhos parecidos
vêm à cabeça. É o caso de Jean-Pierre Melville, herói fílmico de
John Woo, cujos filmes policiais
eram quase sempre protagonizados por personagens-arquétipos,
aparentemente distanciados da
realidade francesa. A cenografia,
a maneira como os personagens
se vestiam, a ausência de diálogos
e de croissants sublinhavam a
sensação de não-pertencimento,
de inscrição em uma tradição
mais próxima dos filmes noir
americanos do que dos dramas
gauleses da época. O tempo se encarregou de conferir relevância à
obra de Melville.
Fico com essa segunda leitura.
Ao leitor, a possibilidade de dar
sua própria versão.
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