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BERNARDO CARVALHO
O triunfo da religião
Àqueles que, como eu, não
entendem muita coisa do
que diz Jacques Lacan, só resta se
agarrar às máximas que o psicanalista vai deixando pelo caminho e tentar arrancar delas, por
uma dedução lógica capenga, algum tipo de conclusão mais sistemática: se x é igual a y e y é igual
a z, então x deve ser igual a z. É
claro que não é o melhor método.
Ainda mais nas ciências humanas. Mas é um método ("Nosso
aparelho neurológico opera na
medida em que alucinamos o que
pode responder, em nós, a nossas
necessidades", para citar o próprio Lacan).
Ao ler sobre o lançamento de
dois livrinhos do psicanalista
francês (na verdade, compilações
de aulas, conferências e entrevistas, organizadas pelo genro Jacques-Alain Miller), fiquei surpreso diante do título de um deles: "O
Triunfo da Religião, Precedido de
Discurso aos Católicos" (o outro é
"Nomes-do-Pai"). Pode haver
coisa mais assustadora partindo
da boca de um psicanalista?
Na entrevista que dá título ao
livro, Lacan responde a um jornalista italiano que "a religião não
triunfará apenas sobre a psicanálise, triunfará sobre muitas outras
coisas também. (...) O real, por
pouco que a ciência aí se meta,
vai se estender, e a religião terá
então muito mais razões para
apaziguar os corações".
Que Lacan não seja a transparência da comunicação, todo
mundo que algum dia tentou lê-lo já entendeu. A dificuldade seria deliberada e intrínseca ao próprio discurso lacaniano, afirmação da linguagem para além da
mera função transitiva, para
além da comunicação e da expressão do sujeito. De qualquer
maneira, há muito o que entender na complexidade embutida
em cada conceito. O real, por
exemplo, é, entre outras coisas, "o
que não funciona". E a função da
religião é encontrar "uma correspondência de tudo com tudo": "A
religião é feita para isso, para curar os homens, isto é, para que
não percebam o que não funciona".
O real é o inimaginável, o que
não é apreensível na sua totalidade, aquilo para o que a ciência
não conseguirá achar um sentido
depois de "todas as suas reviravoltas". Na ciência, o real só aparece por indícios mínimos (Lacan
cita alguns "gadgets" da pequena
feira das novidades científicas:
"Envia-se um foguete à lua, temos
a televisão etc." -a entrevista é
de 1974). A religião, ao contrário,
é capaz de dar um sentido a qualquer coisa, até mesmo à totalidade do inimaginável: "...vai dar
um sentido às experiências mais
curiosas, àquelas pelas quais os
próprios cientistas começam a
sentir uma ponta de angústia. A
religião vai encontrar para isso
sentidos truculentos". É por isso
que ela sempre ganha.
O mais terrível nesse pensamento é que a ciência (e a psicanálise)
parece ter surgido como um sintoma de um mundo para o qual
Deus estava morto. E isso não significa a morte da religião, ao contrário ("O que "Totem e Tabu" nos
ensina é que o pai só proíbe o desejo com eficácia porque está
morto"). A ciência é apenas um
intervalo cíclico. Seu objeto é o
real. Mas não é capaz de apreendê-lo na sua totalidade, como a
religião. Sendo inacessível, o real
é onde Deus está (mesmo morto).
É a falta ontológica. Sinal de que
a religião continuará com a função de "curar os homens da angústia" diante da falta, de não
deixá-los perceber "o que não
funciona".
O pensamento de Lacan tem
desdobramentos próprios e complexos, mas é difícil resistir a associá-lo à esfera mais jornalística
da atualidade. Numa entrevista
publicada há dois domingos no
caderno Mais!, o inglês John
Gray, professor da London School
of Economics, ecoa a idéia da
ciência como um sintoma dos
tempos modernos: "A fé no progresso é filha de um casamento
celebrado na Europa, no início do
século 19, entre a influência declinante do cristianismo e o poder
crescente da ciência. (...) É uma
versão laica da escatologia cristã". Crítico da crença no progresso ("Os defensores do progresso
insistem em que ele é comprovado pela história. E se agarram a
isso para acreditar que a história
é algo além de uma fábula contada por um idiota.") e guiado por
uma concepção cíclica da história
das idéias, Gray não vê a Al Qaeda como "uma volta dos trogloditas. Ela é um subproduto da modernidade tardia".
A associação entre Lacan e
Gray pode parecer esdrúxula. É
claro que Lacan não confunde religião com igreja. Mas não há discurso religioso que sobreviva ativo fora do âmbito da igreja. Desde fevereiro, sou obrigado a ver
diante da minha janela um luminoso que gira, dia e noite, no alto
de uma torre de TV, repetindo à
exaustão: "Deus é fiel". Disseram-me que na França (terra de Lacan) isso seria proibido. Estamos
no Brasil. E, diante da falência
besta e irresponsável do único
projeto político popular que ainda parecia ter alguma chance de
apresentar uma saída honesta e
laica para o país, fica cada vez
mais difícil não pensar que um
dos legados da derrocada do PT,
mais cedo ou mais tarde, serão os
evangélicos no poder, nem que seja por não nos deixarem perceber
"o que não funciona".
Um psicanalista talvez me dissesse que sou paranóico. Já me
disseram que para isso não é preciso um psicanalista. Afinal, "alucinamos o que pode responder,
em nós, a nossas necessidades".
Ou não?
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