São Paulo, terça-feira, 16 de agosto de 2005

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

BERNARDO CARVALHO

O triunfo da religião

Àqueles que, como eu, não entendem muita coisa do que diz Jacques Lacan, só resta se agarrar às máximas que o psicanalista vai deixando pelo caminho e tentar arrancar delas, por uma dedução lógica capenga, algum tipo de conclusão mais sistemática: se x é igual a y e y é igual a z, então x deve ser igual a z. É claro que não é o melhor método. Ainda mais nas ciências humanas. Mas é um método ("Nosso aparelho neurológico opera na medida em que alucinamos o que pode responder, em nós, a nossas necessidades", para citar o próprio Lacan).
Ao ler sobre o lançamento de dois livrinhos do psicanalista francês (na verdade, compilações de aulas, conferências e entrevistas, organizadas pelo genro Jacques-Alain Miller), fiquei surpreso diante do título de um deles: "O Triunfo da Religião, Precedido de Discurso aos Católicos" (o outro é "Nomes-do-Pai"). Pode haver coisa mais assustadora partindo da boca de um psicanalista?
Na entrevista que dá título ao livro, Lacan responde a um jornalista italiano que "a religião não triunfará apenas sobre a psicanálise, triunfará sobre muitas outras coisas também. (...) O real, por pouco que a ciência aí se meta, vai se estender, e a religião terá então muito mais razões para apaziguar os corações".
Que Lacan não seja a transparência da comunicação, todo mundo que algum dia tentou lê-lo já entendeu. A dificuldade seria deliberada e intrínseca ao próprio discurso lacaniano, afirmação da linguagem para além da mera função transitiva, para além da comunicação e da expressão do sujeito. De qualquer maneira, há muito o que entender na complexidade embutida em cada conceito. O real, por exemplo, é, entre outras coisas, "o que não funciona". E a função da religião é encontrar "uma correspondência de tudo com tudo": "A religião é feita para isso, para curar os homens, isto é, para que não percebam o que não funciona".
O real é o inimaginável, o que não é apreensível na sua totalidade, aquilo para o que a ciência não conseguirá achar um sentido depois de "todas as suas reviravoltas". Na ciência, o real só aparece por indícios mínimos (Lacan cita alguns "gadgets" da pequena feira das novidades científicas: "Envia-se um foguete à lua, temos a televisão etc." -a entrevista é de 1974). A religião, ao contrário, é capaz de dar um sentido a qualquer coisa, até mesmo à totalidade do inimaginável: "...vai dar um sentido às experiências mais curiosas, àquelas pelas quais os próprios cientistas começam a sentir uma ponta de angústia. A religião vai encontrar para isso sentidos truculentos". É por isso que ela sempre ganha.
O mais terrível nesse pensamento é que a ciência (e a psicanálise) parece ter surgido como um sintoma de um mundo para o qual Deus estava morto. E isso não significa a morte da religião, ao contrário ("O que "Totem e Tabu" nos ensina é que o pai só proíbe o desejo com eficácia porque está morto"). A ciência é apenas um intervalo cíclico. Seu objeto é o real. Mas não é capaz de apreendê-lo na sua totalidade, como a religião. Sendo inacessível, o real é onde Deus está (mesmo morto). É a falta ontológica. Sinal de que a religião continuará com a função de "curar os homens da angústia" diante da falta, de não deixá-los perceber "o que não funciona".
O pensamento de Lacan tem desdobramentos próprios e complexos, mas é difícil resistir a associá-lo à esfera mais jornalística da atualidade. Numa entrevista publicada há dois domingos no caderno Mais!, o inglês John Gray, professor da London School of Economics, ecoa a idéia da ciência como um sintoma dos tempos modernos: "A fé no progresso é filha de um casamento celebrado na Europa, no início do século 19, entre a influência declinante do cristianismo e o poder crescente da ciência. (...) É uma versão laica da escatologia cristã". Crítico da crença no progresso ("Os defensores do progresso insistem em que ele é comprovado pela história. E se agarram a isso para acreditar que a história é algo além de uma fábula contada por um idiota.") e guiado por uma concepção cíclica da história das idéias, Gray não vê a Al Qaeda como "uma volta dos trogloditas. Ela é um subproduto da modernidade tardia".
A associação entre Lacan e Gray pode parecer esdrúxula. É claro que Lacan não confunde religião com igreja. Mas não há discurso religioso que sobreviva ativo fora do âmbito da igreja. Desde fevereiro, sou obrigado a ver diante da minha janela um luminoso que gira, dia e noite, no alto de uma torre de TV, repetindo à exaustão: "Deus é fiel". Disseram-me que na França (terra de Lacan) isso seria proibido. Estamos no Brasil. E, diante da falência besta e irresponsável do único projeto político popular que ainda parecia ter alguma chance de apresentar uma saída honesta e laica para o país, fica cada vez mais difícil não pensar que um dos legados da derrocada do PT, mais cedo ou mais tarde, serão os evangélicos no poder, nem que seja por não nos deixarem perceber "o que não funciona".
Um psicanalista talvez me dissesse que sou paranóico. Já me disseram que para isso não é preciso um psicanalista. Afinal, "alucinamos o que pode responder, em nós, a nossas necessidades". Ou não?


Texto Anterior: Série: Hormônios afloram com forças do mal
Próximo Texto: Música: Na segunda noite, Campari volta às origens do rock
Índice



Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.