São Paulo, domingo, 16 de agosto de 2009

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Obras de Lina Bardi provocam até hoje

Estado de construções da artista mostra incompreensão em torno de suas obras

Novo livro traz os escritos da arquiteta que projetou o Masp, o teatro Oficina, o Sesc Pompeia e a Casa de Vidro, "pérolas aos porcos"

Tuca Vieira/Folha Imagem
Teatro oficina, construído em 1984, em São Paulo

ANA PAULA SOUSA
SILAS MARTÍ
DA REPORTAGEM LOCAL
Lina Bo Bardi, ao fim da vida, repetia: "De que adianta jogar pérolas aos porcos?". A arquiteta italiana, que adotou o Brasil como casa e laboratório de seus traços modernos, gostava da rudeza, da falta de polidez e da transparência. Ao transpor esses conceitos para a arquitetura, chocou seus contemporâneos e legou um incômodo.
"Seu legado é o de uma pessoa que não esmoreceu, não baixou a guarda", diz o arquiteto Marcelo Ferraz, que trabalhou com Lina por 15 anos. "Ela não procurava nunca uma estrada batida. Por isso, incomodou e continua incomodando."
Em São Paulo, deixou esse incômodo no Masp, que não aceita sua museografia, com as telas flutuando em cavaletes de vidro. Na Bahia, foi quase que apagada de Salvador nos últimos 50 anos, mesmo tendo erguido, num velho casarão, o Museu de Arte Moderna.
"O descaso com o que ela deixou foi enorme. Este museu está num estado calamitoso", diz Solange Farkas, diretora do MAM, que pretende devolver ao espaço seus traços originais.
Em Uberlândia, no interior mineiro, os padres da igreja que Lina projetou expandiram o altar, taparam as frestas nos tijolos. Enfim, o novo pároco quer retornar ao projeto original.
Indigesta até hoje, Lina deixou poucas obras. Agora, um livro de textos seus lançado pela Cosac Naify, "Lina por Escrito", dá a dimensão exata do que a arquiteta quis fazer e não fez, as frustrações que enfrentou em vida, a atitude implacável diante do fracasso e da beleza.
Lina, vinda da Itália em 1947, tentou se enquadrar nas correntes modernas da construção no país, mas Vilanova Artigas, Oscar Niemeyer e entourage não devolveram seus elogios. A mulher de Pietro Maria Bardi seria sempre a fascista casca grossa, insuportável, brechtiana, uma pedra no sapato.
"Ela não queria ficar repetindo a arquitetura europeia", diz o arquiteto Renato Anelli, conselheiro do Instituto Bardi, que cuida do espólio do casal. "É uma arte que agride, chacoalha o espectador de sua letargia."
Lina fez o teatro Oficina em forma de rua, pregou quadros nos seus cavaletes de vidro no Masp, ergueu a Casa de Vidro sobre pilares no meio de uma plantação de chá, dilapidou a dureza fabril para criar um espaço de lazer no Sesc Pompeia.
Na Bahia, quis expor arte popular num casarão do século 16, com janelas abertas para o mar e, a partir da Ladeira da Misericórdia, pensou num projeto que recuperasse o velho traçado urbanístico do Pelourinho.
Mas poucos entenderam sua arquitetura de choque. Seus espaços vastos demais viraram "saletas" que ela tanto abominava, sua museografia para o Masp deu lugar ao projeto conservador que põe o quadro contra fundo neutro. A Ladeira da Misericórdia está abandonada.

"Pérolas de ironia"
E sua provocação não se limitava à arquitetura. Também nos escritos incomodava. "Lina e Bardi mantinham uma coluna na revista "Habitat", na qual assinavam como Alencastro. Mandavam provocações para todo o lado, pérolas de ironia", diz Silvana Rubino, uma das organizadoras de "Lina por Escrito". O casal criticou até o edifício Martinelli e a catedral da Sé, irritando a elite paulistana.
Tal atitude agravava as incompreensões em torno de sua obra. Era duro entender que não foram as curvas de Niemeyer, "complacências plásticas", que serviram de cartilha para o modernismo de Lina. Suas construções herdaram traços do seringueiro, da casa de pau a pique, do carro de boi. Lina quis injetar em cada projeto o que chamou de "resolução furiosa de fazer, soberbia e poesia".
Durante a construção do Masp, no começo dos anos 60, constatou: "O Brasil está dividido em dois". De um lado, os que olham para fora "procurando as últimas novidades para jogá-las, revestidas de uma apressada camada nacional, no mercado de cultura". De outro, os que "olham dentro de si procurando as raízes duma cultura para construí-la com uma seriedade que não admite sorrisos".
Não por acaso, foi amiga do neorrealista italiano Roberto Rossellini, que fazia da realidade crua a estrutura de seus filmes. No Brasil, se juntou a Glauber Rocha e a Zé Celso, o cinema novo e o teatro de protesto como armas do povo. "Interessava para ela a poesia, não a beleza", lembra Ferraz.
Por mais à esquerda que fosse, Lina era casada com Bardi, fascista declarado, e isso a atingiu. Sua arquitetura não foi tachada de fascista, mas seu temperamento irascível, e, por extensão, suas formas, irritavam e irritam até os dias de hoje.
Mas Lina, apesar de briguenta, não era inatingível. "Às vezes, ela dizia: "Eu já tentei, eu sei que vai cair no vazio. A mediocridade tomou conta do país". Ela tinha esse sofrimento interno", conta Ferraz. "Quando ela viu, por exemplo, a Ladeira da Misericórdia abandonada, ocupada por sem-tetos, foi profundamente atingida. Ali começamos a perceber que ela estava entregando os pontos." Lina morreu em sua Casa de Vidro, aos 78 anos, em 1992.

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