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O escritor gaúcho, que completou
60 anos, lança esta semana seu
46º livro, "A Majestade do
Xingu". Em entrevista à Folha,
diz que usou recursos de ficção,
biografia e autobiografia para
contar a história do emigrante
judeu Noel Nutels, que nasceu na
Rússia, veio para o Brasil ainda
criança e passou boa parte de sua
vida nas aldeias indígenas do
Xingu, como médico sanitarista
Moacyr Scliar recria história de judeu que viveu com índios
OTÁVIO DIAS
da Reportagem Local
O escritor Moacyr Scliar lança
esta semana seu 46º livro, "A Majestade do Xingu", no qual usa recursos de ficção, biografia e autobiografia para recriar a vida do
médico sanitarista e indigenista
judeu Noel Nutels (1913-1973),
nascido na Rússia e naturalizado
brasileiro.
Há pelo menos 25 anos, Scliar,
também médico sanitarista e filho
de emigrantes judeus, é fascinado
pela surpreendente trajetória de
Nutels, que começa em um vilarejo da Bessarábia, na fronteira da
Rússia com a Romênia, e termina
nas aldeias indígenas do Xingu,
como médico do Serviço de Proteção ao Índio e criador do Serviço
de Unidades Sanitárias Aéreas.
Só há três anos, entretanto, ele
descobriu a chave de como contar
a vida do indigenista sem a responsabilidade de escrever uma biografia, ou seja, de ser fiel à realidade.
Para poder exercer com liberdade
sua arte de ficcionista, Scliar criou
um personagem fictício, um garoto judeu que emigra para o Brasil
no mesmo navio de Nutels e acompanha toda a sua vida, narrando-a
sob seu ponto de vista.
"Esse narrador me permitiu
contar a história com toda a liberdade que tem um personagem de
ficção olhando para um personagem real", diz Scliar, que acaba de
completar 60 anos e é colaborador
da Folha às quintas-feiras.
Embora não seja autobiográfico,
o narrador fictício nasceu de experiências vividas por Scliar ou por
emigrantes judeus que ele conheceu. Fecha-se a idéia de um livro de
ficção e, ao mesmo tempo, biográfico e autobiográfico. Leia entrevista concedida pelo escritor, por
telefone de Porto Alegre.
Folha - O que tem de biografia,
de autobiografia e de ficção em "A
Majestade do Xingu"?
Scliar - Convivi com o Noel Nutels esporadicamente, admirava-o
à distância, queria escrever sobre
ele. Mas não me agradava a idéia
de transformá-lo numa figura ficcional, de escrever um romance no
qual ele fosse um personagem. Até
que me ocorreu a idéia de criar um
segundo personagem, o narrador,
por meio de quem o Noel é visto
com toda a liberdade que pode ter
um personagem de ficção olhando
para um personagem real.
Folha - E o narrador, ele é autobiográfico?
Scliar - Ele corresponde a muitas figuras que conheci. Um dos
objetivos desse livro é comparar os
diferentes destinos de emigrantes
judeus no Brasil. Os dois personagens, o narrador e o Noel, vieram
no mesmo navio. Depois, viveram
vidas completamente diferentes.
Folha - Por que essa necessidade
de ter liberdade para escrever?
Scliar - Não me considero um
biógrafo, que é um especialista,
possui toda uma metodologia. Por
outro lado, é possível criar ficção
baseada num personagem real,
mas paga-se o preço de deliberadamente falsear as coisas. Corre-se
o risco de se inventar diálogos que
não se sabe se foram ditos, fazer
interpretações dos pensamentos
das pessoas que não se sabe se correspondem à realidade. Eu não poderia ter certeza do que sentiu
Noel ao ver os índios pela primeira
vez. Teria de inventar. No meu livro, quem inventa é o narrador.
Folha - Como lhe veio essa idéia?
O sr. se inspirou em outro escritor?
Scliar - Não, foi um estalo. Desde a morte de Noel, em 1973, eu
buscava uma chave para poder entrar nessa história. Um dia, estava
na Alemanha, viajando de trem e
pensando no Noel, angustiado
porque não encontrava uma solução. Pensava no navio quando vi
essa figura ficcional, esse menino,
junto com Noel. Nasceu o livro.
Folha - O livro tem outra característica que é uma associação meio
livre de idéias. O narrador está internado num hospital e conta a
história para o médico. Houve a intenção de explorar a linguagem
delirante de um moribundo?
Scliar - A situação do narrador,
doente num hospital, talvez sedado, introduz um elemento de dúvida sobre o que ele narra. Se eu
escrevesse a biografia do Noel, não
poderia incorporar as minhas fantasias. Enquanto que a forma como escolhi para contar essa história abre espaço para dúvidas. Coloquei o narrador numa situação
em que ele está mais propenso a
criar fantasias e, portanto, ficção.
Folha - Dessa maneira, o sr. reforçou a liberdade que queria ter?
Scliar - Exatamente.
Folha - Por que esse desejo antigo de escrever sobre o Noel?
Scliar - Ele era uma figura folclórica. Todo mundo contava as
história do Noel. Além disso, ele
era médico, como eu sou, trabalhava em saúde pública, como trabalhei. Finalmente, havia o fato de
ele ser um emigrante judeu. Veio
da mesma região da Rússia que
meus pais. E me comovia o fato de
que um emigrante judeu tenha se
apaixonado pela causa dos índios e
feito disso sua vida.
Folha - O que o livro acrescenta
de novo à sua literatura?
Scliar - Acabei de fazer 60 anos
e acho que cheguei a um entendimento das várias situações que vivi
em minha vida. O entendimento
dos destinos judaicos no Brasil, da
condição de médico de saúde pública, das limitações do ser humano. Além disso, esse é o meu livro
mais realista. Nos anos 60, fui muito influenciado pelo realismo fantástico, meus livros tinha centauros, personagens que voavam.
Agora, trabalho com seres humanos. Mas continuo um escritor
fantasioso. Fui uma criança cheia
de fantasias e o escritor mantém
viva a criança que foi.
Livro: A Majestade do Xingu
Autor: Moacyr Scliar
Lançamento: Companhia das Letras
Quanto: R$ 19 (210 págs.)
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