São Paulo, terça, 16 de setembro de 1997.



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O escritor gaúcho, que completou 60 anos, lança esta semana seu 46º livro, "A Majestade do Xingu". Em entrevista à Folha, diz que usou recursos de ficção, biografia e autobiografia para contar a história do emigrante judeu Noel Nutels, que nasceu na Rússia, veio para o Brasil ainda criança e passou boa parte de sua vida nas aldeias indígenas do Xingu, como médico sanitarista
Moacyr Scliar recria história de judeu que viveu com índios

OTÁVIO DIAS
da Reportagem Local

O escritor Moacyr Scliar lança esta semana seu 46º livro, "A Majestade do Xingu", no qual usa recursos de ficção, biografia e autobiografia para recriar a vida do médico sanitarista e indigenista judeu Noel Nutels (1913-1973), nascido na Rússia e naturalizado brasileiro.
Há pelo menos 25 anos, Scliar, também médico sanitarista e filho de emigrantes judeus, é fascinado pela surpreendente trajetória de Nutels, que começa em um vilarejo da Bessarábia, na fronteira da Rússia com a Romênia, e termina nas aldeias indígenas do Xingu, como médico do Serviço de Proteção ao Índio e criador do Serviço de Unidades Sanitárias Aéreas.
Só há três anos, entretanto, ele descobriu a chave de como contar a vida do indigenista sem a responsabilidade de escrever uma biografia, ou seja, de ser fiel à realidade. Para poder exercer com liberdade sua arte de ficcionista, Scliar criou um personagem fictício, um garoto judeu que emigra para o Brasil no mesmo navio de Nutels e acompanha toda a sua vida, narrando-a sob seu ponto de vista.
"Esse narrador me permitiu contar a história com toda a liberdade que tem um personagem de ficção olhando para um personagem real", diz Scliar, que acaba de completar 60 anos e é colaborador da Folha às quintas-feiras.
Embora não seja autobiográfico, o narrador fictício nasceu de experiências vividas por Scliar ou por emigrantes judeus que ele conheceu. Fecha-se a idéia de um livro de ficção e, ao mesmo tempo, biográfico e autobiográfico. Leia entrevista concedida pelo escritor, por telefone de Porto Alegre.

Folha - O que tem de biografia, de autobiografia e de ficção em "A Majestade do Xingu"?
Scliar
- Convivi com o Noel Nutels esporadicamente, admirava-o à distância, queria escrever sobre ele. Mas não me agradava a idéia de transformá-lo numa figura ficcional, de escrever um romance no qual ele fosse um personagem. Até que me ocorreu a idéia de criar um segundo personagem, o narrador, por meio de quem o Noel é visto com toda a liberdade que pode ter um personagem de ficção olhando para um personagem real.
Folha - E o narrador, ele é autobiográfico?
Scliar
- Ele corresponde a muitas figuras que conheci. Um dos objetivos desse livro é comparar os diferentes destinos de emigrantes judeus no Brasil. Os dois personagens, o narrador e o Noel, vieram no mesmo navio. Depois, viveram vidas completamente diferentes.
Folha - Por que essa necessidade de ter liberdade para escrever?
Scliar
- Não me considero um biógrafo, que é um especialista, possui toda uma metodologia. Por outro lado, é possível criar ficção baseada num personagem real, mas paga-se o preço de deliberadamente falsear as coisas. Corre-se o risco de se inventar diálogos que não se sabe se foram ditos, fazer interpretações dos pensamentos das pessoas que não se sabe se correspondem à realidade. Eu não poderia ter certeza do que sentiu Noel ao ver os índios pela primeira vez. Teria de inventar. No meu livro, quem inventa é o narrador.
Folha - Como lhe veio essa idéia? O sr. se inspirou em outro escritor?
Scliar
- Não, foi um estalo. Desde a morte de Noel, em 1973, eu buscava uma chave para poder entrar nessa história. Um dia, estava na Alemanha, viajando de trem e pensando no Noel, angustiado porque não encontrava uma solução. Pensava no navio quando vi essa figura ficcional, esse menino, junto com Noel. Nasceu o livro.
Folha - O livro tem outra característica que é uma associação meio livre de idéias. O narrador está internado num hospital e conta a história para o médico. Houve a intenção de explorar a linguagem delirante de um moribundo?
Scliar
- A situação do narrador, doente num hospital, talvez sedado, introduz um elemento de dúvida sobre o que ele narra. Se eu escrevesse a biografia do Noel, não poderia incorporar as minhas fantasias. Enquanto que a forma como escolhi para contar essa história abre espaço para dúvidas. Coloquei o narrador numa situação em que ele está mais propenso a criar fantasias e, portanto, ficção.
Folha - Dessa maneira, o sr. reforçou a liberdade que queria ter?
Scliar
- Exatamente.
Folha - Por que esse desejo antigo de escrever sobre o Noel?
Scliar
- Ele era uma figura folclórica. Todo mundo contava as história do Noel. Além disso, ele era médico, como eu sou, trabalhava em saúde pública, como trabalhei. Finalmente, havia o fato de ele ser um emigrante judeu. Veio da mesma região da Rússia que meus pais. E me comovia o fato de que um emigrante judeu tenha se apaixonado pela causa dos índios e feito disso sua vida.
Folha - O que o livro acrescenta de novo à sua literatura?
Scliar
- Acabei de fazer 60 anos e acho que cheguei a um entendimento das várias situações que vivi em minha vida. O entendimento dos destinos judaicos no Brasil, da condição de médico de saúde pública, das limitações do ser humano. Além disso, esse é o meu livro mais realista. Nos anos 60, fui muito influenciado pelo realismo fantástico, meus livros tinha centauros, personagens que voavam. Agora, trabalho com seres humanos. Mas continuo um escritor fantasioso. Fui uma criança cheia de fantasias e o escritor mantém viva a criança que foi.

Livro: A Majestade do Xingu Autor: Moacyr Scliar Lançamento: Companhia das Letras Quanto: R$ 19 (210 págs.)


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