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CRÍTICA
Obra é mistura exemplar de ficção e realidade
BERNARDO AJZENBERG
Secretário de Redação
Pouca gente no Brasil escreve
histórias tão bem como Moacyr
Scliar. Ainda menos gente escreve
tão bem histórias tão imaginosas
como as dele.
Seu forte não está na roupagem
ou no ornamento da frase. Está no
encadeamento narrativo, na capacidade de ordenar episódios, sempre curiosos e carregados de simbolismo, de modo a fazer com que
o leitor, sem percebê-lo, pratique a
fruição do texto como se esse fizesse parte de sua própria vida.
Talvez por esse motivo tenha o
conto a predileção do autor, o conto e sua necessária sequidão, seu
rápido e eficiente gatilho.
Mesmo não se tratando de contos, em "A Majestade do Xingu",
Scliar põe mais uma vez o seu domínio técnico da narrativa -e seu
marcante apego a temas como a
medicina e o judaísmo- a serviço
de uma história. Uma bela história
que, a rigor, compõe-se de duas
histórias paralelas.
Internado na UTI de um hospital
em São Paulo, um velho judeu decide contar ao médico a vida de um
amigo cuja família, como a dele,
trocou a Bessarábia (Rússia) pelo
Brasil, em 1921.
Os dois se conheceram, meninos, a bordo do navio "Madeira"
(alemão, apesar do nome), onde,
durante a demorada viagem de
emigração, viveram inúmeras pequenas aventuras e travaram forte
amizade, sendo que o narrador,
desde o início, encaixou-se no relacionamento como aquele que
admira e se submete voluntariamente às ordens do outro.
Chegando ao Brasil, porém, contingências os separam, de modo
dolorido, para o resto de suas vidas.
Ocorre que o tal amigo do narrador é nada mais nada menos do
que Noel Nutels (1913-1973), médico sanitarista que se tornou um
dos mais importantes indigenistas
brasileiros, sobre quem Carlos
Drummond de Andrade, ao lamentar sua morte, escreveu:
"Noel Nutels repousa/ Do desamor alheio aos índios/ E de seu
próprio amor maior aos índios".
À história de personalidade tão
marcante e tão ativa, tão rapidamente integrada à vida brasileira
apesar da origem russa, o narrador
vai contrapondo a sua própria história: uma coleção de fracassos,
pessoais e profissionais, a rendição a uma mente eternamente
"suja", a permanente sensação
de viver "entre dois mundos", a
idolatria ao outro, cujos feitos
acompanha em permanência.
Enquanto Nutels esbanja realizações e energia pelo Brasil afora,
o narrador se esconde e se corrói
por trás de seu balcão de lojista
discreto no bairro do Bom Retiro.
Scliar cria, assim, uma teia dramática atraente, além de didática
(os leitores mais jovens certamente ignoram quem tenha sido Nutels) e com elevado grau de suspense, pois, entre outras medidas
arriscadas, o narrador fará questão de visitar o famoso indigenista
quando souber que ele se encontra
à beira da morte.
Somem-se a tudo isso saborosas
histórias (verdadeiros minicontos) envolvendo índios ou marinheiros, progroms em aldeias judaicas, ações do Exército Vermelho -com aparições do escritor
Isaac Babel (1894-1941)-, conflito
de gerações, repressão, luta política durante o regime militar no
Brasil nos anos 60/70, e, certamente, para um delicioso livro, mistura exemplar de ficção e realidade,
não faltará mais nada.
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