São Paulo, terça, 16 de setembro de 1997.



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CRÍTICA
Obra é mistura exemplar de ficção e realidade

BERNARDO AJZENBERG
Secretário de Redação

Pouca gente no Brasil escreve histórias tão bem como Moacyr Scliar. Ainda menos gente escreve tão bem histórias tão imaginosas como as dele.
Seu forte não está na roupagem ou no ornamento da frase. Está no encadeamento narrativo, na capacidade de ordenar episódios, sempre curiosos e carregados de simbolismo, de modo a fazer com que o leitor, sem percebê-lo, pratique a fruição do texto como se esse fizesse parte de sua própria vida.
Talvez por esse motivo tenha o conto a predileção do autor, o conto e sua necessária sequidão, seu rápido e eficiente gatilho.
Mesmo não se tratando de contos, em "A Majestade do Xingu", Scliar põe mais uma vez o seu domínio técnico da narrativa -e seu marcante apego a temas como a medicina e o judaísmo- a serviço de uma história. Uma bela história que, a rigor, compõe-se de duas histórias paralelas.
Internado na UTI de um hospital em São Paulo, um velho judeu decide contar ao médico a vida de um amigo cuja família, como a dele, trocou a Bessarábia (Rússia) pelo Brasil, em 1921.
Os dois se conheceram, meninos, a bordo do navio "Madeira" (alemão, apesar do nome), onde, durante a demorada viagem de emigração, viveram inúmeras pequenas aventuras e travaram forte amizade, sendo que o narrador, desde o início, encaixou-se no relacionamento como aquele que admira e se submete voluntariamente às ordens do outro.
Chegando ao Brasil, porém, contingências os separam, de modo dolorido, para o resto de suas vidas.
Ocorre que o tal amigo do narrador é nada mais nada menos do que Noel Nutels (1913-1973), médico sanitarista que se tornou um dos mais importantes indigenistas brasileiros, sobre quem Carlos Drummond de Andrade, ao lamentar sua morte, escreveu: "Noel Nutels repousa/ Do desamor alheio aos índios/ E de seu próprio amor maior aos índios".
À história de personalidade tão marcante e tão ativa, tão rapidamente integrada à vida brasileira apesar da origem russa, o narrador vai contrapondo a sua própria história: uma coleção de fracassos, pessoais e profissionais, a rendição a uma mente eternamente "suja", a permanente sensação de viver "entre dois mundos", a idolatria ao outro, cujos feitos acompanha em permanência.
Enquanto Nutels esbanja realizações e energia pelo Brasil afora, o narrador se esconde e se corrói por trás de seu balcão de lojista discreto no bairro do Bom Retiro.
Scliar cria, assim, uma teia dramática atraente, além de didática (os leitores mais jovens certamente ignoram quem tenha sido Nutels) e com elevado grau de suspense, pois, entre outras medidas arriscadas, o narrador fará questão de visitar o famoso indigenista quando souber que ele se encontra à beira da morte.
Somem-se a tudo isso saborosas histórias (verdadeiros minicontos) envolvendo índios ou marinheiros, progroms em aldeias judaicas, ações do Exército Vermelho -com aparições do escritor Isaac Babel (1894-1941)-, conflito de gerações, repressão, luta política durante o regime militar no Brasil nos anos 60/70, e, certamente, para um delicioso livro, mistura exemplar de ficção e realidade, não faltará mais nada.



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