São Paulo, sábado, 16 de setembro de 2000

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LIVROS/LANÇAMENTOS

"PREZADO SENHOR, PREZADA SENHORA"
Idéia da obra transcende conteúdo

MARCELO COELHO
DO CONSELHO EDITORIAL

Os bilhetes apimentados de d. Pedro 1º à marquesa de Santos, a carta-testamento de Getúlio Vargas, os conselhos de Mário de Andrade aos jovens escritores, a correspondência de Proust, as cartas que o marquês de Sade enviava da prisão: tudo isto é comentado em "Prezado Senhor, Prezada Senhora", coletânea de ensaios organizada por Walnice Nogueira Galvão e Nádia Battella Gotlib.
Com 416 páginas, o livro parece até pequeno para a variedade de autores que comenta. Reúne 40 ensaios, que vão desde o amável passeio que José Mindlin nos oferece entre as preciosidades de sua biblioteca (há cartas de Drummond, de Hipólito da Costa, de Marinetti) à curta, mas densa, exposição da obra epistolar de Hannah Arendt por Celso Lafer.
Em poucas páginas, Renato Mezan traça um panorama das cartas de Freud: as variações de tratamento conforme o destinatário, as brincadeiras juvenis, as diferenças com Jung, a proximidade com Fliess são destacadas.
Gloria Carneiro do Amaral introduz o leitor à obra de madame de Sévigné (1626-1696), que passou à história da literatura exclusivamente pelas cartas, espirituosas e apaixonadas, que escreveu. As patriarcais, severas cartas de Karl Marx a Paul Lafargue, pretendente à mão de sua filha, são destacadas por José de Souza Martins num texto cuidadoso.
A tumultuada correspondência de Fernando Pessoa com Ofélia de Queiroz -na qual, nas tímidas intenções de noivado, interfere o heterônimo Álvaro de Campos- é objeto de uma análise sensível de Leyla Perrone-Moisés.
Bem, não vou resumir cada ensaio deste livro. Os que citei me parecem ter um ponto em comum: serviriam como prefácio a uma edição das cartas que comentam, situando seus autores e chamando a atenção para os aspectos mais significativos dos textos coligidos.
De alguma forma, parecem desgarrados do volume a que deveriam pertencer. São um convite à leitura; mas viramos a página e logo encontramos outro ensaio, de outro autor, sobre outra correspondência... Nossa curiosidade não fica saciada.
Mas não é disso que se trata sempre que se lê a correspondência alheia? Grandes autores muitas vezes parecem opacos nas cartas que escrevem. Quanto mais íntimos, mais se aproximam da banalidade. "Prezado Senhor, Prezada Senhora" nos mostra Machado de Assis se queixando de uma inflamação de garganta, ou um Raymond Chandler com "um prazer especial em comentar as idiotices da vida à sua volta".
É verdade que, por vezes, o desabafo cotidiano atinge grande intensidade dramática, como nas cartas de Lima Barreto, quase bilhetes de suicida, comentadas por Antonio Arnoni Prado.
O problema é que há uma diferença entre os escritores que usam a correspondência como meio para debater idéias, projetos, livros, e aqueles que nos legaram principalmente um documento pessoal, de interesse histórico, mas sem maiores investimentos intelectuais.
As cartas de Mário de Andrade são, como se sabe, um monumento tanto do ponto de vista pessoal quanto do ponto de vista da reflexão estética. No livro, há três ensaios sobre o tema. Outro grande intelectual, Alexandre Eulalio, tem 18 cartas que enviou de uma viagem à Europa em 1958 analisadas por Wander Melo Miranda; mas exceto pela euforia e pela erudição do missivista, com quem o leitor logo simpatiza, tudo leva a crer que esses documentos não transcendem o âmbito particular que lhes deu origem.
O livro não poderia deixar de ser desigual; digo isso com certa hesitação, porque afinal todos os ensaios são rigorosos e bem-feitos -só que entre a excelente carta do tradutor alemão de "Grande Sertão: Veredas" a Guimarães Rosa e os bilhetes insípidos que Pedro Nava recebeu de admiradores o interesse varia muito.
É como se a idéia deste livro, ou a existência deste livro, fosse também mais interessante do que seu conteúdo; move-nos não só a vontade de travar conhecimento com a intimidade dos escritores do passado (sentimento que motiva o sucesso de tantas biografias), mas ainda uma nostalgia pelo gênero -uma vontade de ler e escrever cartas nós também.
O gênero até que está revivendo graças à Internet; por sua vez, o gosto literário moderno também se inclina pelo fragmento, pelo confessional, pela forma curta. Dois fatores que tornam a iniciativa deste volume muito bem-vinda. Mas sentimos também obscuramente que um e-mail não tem o mesmo charme, o mesmo vagar, de uma carta do correio; e que as cartas de muitos escritores não sobrevivem como forma literária autônoma. Dois fatores, então, que nos desanimam um pouco depois de ler o livro.


Prezado Senhor, Prezada Senhora
   
Autoras: Walnice Nogueira Galvão e Nádia Battella Gotlib (organizadoras) Editora: Companhia das Letras Quanto: R$ 33,50 (416 págs.)




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