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ARTIGO
Como desbundar uma ópera
GERALD THOMAS
ESPECIAL PARA A FOLHA
Não existe nada mais surreal
ou kafkiano do que o que está acontecendo na Justiça do Rio
de Janeiro pós-"Tristão e Isolda",
onde, em protesto a vaias organizadamente agressivas, resolvi
mostrar minha bunda.
Bem, o caso foi parar na polícia.
Depois foi a julgamento. O juiz,
aliás muito simpático, insistia que
eu aceitasse a pena em troca de alguns salários mínimos. Recusei
por uma questão de princípios:
não cometi crime algum. Tirar a
roupa em teatro (ou, ao meu ver,
em qualquer outro lugar) não é
crime. Além do mais, se eu aceitasse a pena, estaria mandando
uma mensagem perigosa para
meus companheiros da classe artística: "Cuidado com o que disserem e fizerem", e isso, em plena
democracia Lula, não faria o menor sentido.
Kafka
Aliás, mais surreal ainda foi sair
daquela sala apertada do fórum,
no centro do Rio de Janeiro, entrar no táxi e já ouvir no rádio as
minhas próprias declarações dadas minutos antes, durante e depois do processo. "Moço", pedia
eu, trêmulo e delicadamente, como se fosse Joseph K na estória de
Kafka, "será que daria pra abaixar
um pouco ou então pra desligar?".
"Negativo, Thomas! Estou
acompanhando esse caso ansiosamente. Meu ponto é aqui no fórum e foi Jesus Cristo que colocou
o senhor dentro do meu carro.
Como é que o senhor me pede
agora para perder justamente os
momentos finais?" Não houve
barganha. Eu estava vivendo uma
cena de horror cômico de um filme de Woody Allen.
Mas, ao menos, vários meios da
imprensa carioca naquela instância foram maravilhosamente a
meu favor.
Bom, isso foi em agosto, quando eu ainda estava no Brasil.
De repente, há duas semanas,
soube que uma tal de Gisela Alexandra Brandão, do Ministério
Publico havia me denunciado novamente (e novamente a acusação pendente é ato obsceno).
Que tipo de lucro ela pretende
fazer com esse caso aparecendo
ao meu lado virando notícia?
Cartão-postal
Ato obsceno porque mostrei a
bunda na cidade cujo cartão-postal é uma bunda não faz o menor
sentido, caramba! Já falei e não
canso de falar: se me prenderem
(e a lei prevê de um a quatro anos
de prisão) quero que prendam
também o desfile do Carnaval inteiro da Marquês de Sapucaí, todas as praias cariocas, todos os espetáculos teatrais (sim, porque
não há teatro sem nudez, praticamente) e por aí vai.
Será que o problema é a minha
bunda? Será que ela é branca demais para os padrões cariocas? É
isso que choca o balneário?
Vou logo avisando: não estarei
presente nesse circo que estão
montando: condenem-me logo
de uma vez e economizem dinheiro público e exerçam seu trabalho
que vocês, da Justiça carioca, certamente têm mais o que fazer.
Preocupar-se e gastar seu valioso
tempo com a minha bunda é a
prova da falência do sistema da
Justiça e da Polícia do Rio de Janeiro.
Talvez por isso a coisa lá ande
do jeito que anda. E quem paga
essas contas? O contribuinte. Então, não me aguardem. Serei o
primeiro exilado do governo Lula, o que não deixa de ser a maior
piada ou triste paradoxo da história. Afinal, estou ciente e consciente de que não cometi crime algum, mostrando a minha bunda
no MEU espaço cênico, dentro do
espaço confinado alegórico chamado teatro.
Está tudo podre no Rio de Janeiro e não estamos nem perto do
Reino da Dinamarca, mas a caveira de Yorik, símbolo da falência
da ação de Hamlet, virou, segundo a Justiça carioca, a minha bunda.
Gerald Thomas é dramaturgo
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