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São Paulo, terça-feira, 16 de setembro de 2003

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ARTIGO

Como desbundar uma ópera

GERALD THOMAS
ESPECIAL PARA A FOLHA

Não existe nada mais surreal ou kafkiano do que o que está acontecendo na Justiça do Rio de Janeiro pós-"Tristão e Isolda", onde, em protesto a vaias organizadamente agressivas, resolvi mostrar minha bunda.
Bem, o caso foi parar na polícia. Depois foi a julgamento. O juiz, aliás muito simpático, insistia que eu aceitasse a pena em troca de alguns salários mínimos. Recusei por uma questão de princípios: não cometi crime algum. Tirar a roupa em teatro (ou, ao meu ver, em qualquer outro lugar) não é crime. Além do mais, se eu aceitasse a pena, estaria mandando uma mensagem perigosa para meus companheiros da classe artística: "Cuidado com o que disserem e fizerem", e isso, em plena democracia Lula, não faria o menor sentido.

Kafka
Aliás, mais surreal ainda foi sair daquela sala apertada do fórum, no centro do Rio de Janeiro, entrar no táxi e já ouvir no rádio as minhas próprias declarações dadas minutos antes, durante e depois do processo. "Moço", pedia eu, trêmulo e delicadamente, como se fosse Joseph K na estória de Kafka, "será que daria pra abaixar um pouco ou então pra desligar?".
"Negativo, Thomas! Estou acompanhando esse caso ansiosamente. Meu ponto é aqui no fórum e foi Jesus Cristo que colocou o senhor dentro do meu carro. Como é que o senhor me pede agora para perder justamente os momentos finais?" Não houve barganha. Eu estava vivendo uma cena de horror cômico de um filme de Woody Allen.
Mas, ao menos, vários meios da imprensa carioca naquela instância foram maravilhosamente a meu favor.
Bom, isso foi em agosto, quando eu ainda estava no Brasil.
De repente, há duas semanas, soube que uma tal de Gisela Alexandra Brandão, do Ministério Publico havia me denunciado novamente (e novamente a acusação pendente é ato obsceno).
Que tipo de lucro ela pretende fazer com esse caso aparecendo ao meu lado virando notícia?

Cartão-postal
Ato obsceno porque mostrei a bunda na cidade cujo cartão-postal é uma bunda não faz o menor sentido, caramba! Já falei e não canso de falar: se me prenderem (e a lei prevê de um a quatro anos de prisão) quero que prendam também o desfile do Carnaval inteiro da Marquês de Sapucaí, todas as praias cariocas, todos os espetáculos teatrais (sim, porque não há teatro sem nudez, praticamente) e por aí vai.
Será que o problema é a minha bunda? Será que ela é branca demais para os padrões cariocas? É isso que choca o balneário?
Vou logo avisando: não estarei presente nesse circo que estão montando: condenem-me logo de uma vez e economizem dinheiro público e exerçam seu trabalho que vocês, da Justiça carioca, certamente têm mais o que fazer. Preocupar-se e gastar seu valioso tempo com a minha bunda é a prova da falência do sistema da Justiça e da Polícia do Rio de Janeiro.
Talvez por isso a coisa lá ande do jeito que anda. E quem paga essas contas? O contribuinte. Então, não me aguardem. Serei o primeiro exilado do governo Lula, o que não deixa de ser a maior piada ou triste paradoxo da história. Afinal, estou ciente e consciente de que não cometi crime algum, mostrando a minha bunda no MEU espaço cênico, dentro do espaço confinado alegórico chamado teatro.
Está tudo podre no Rio de Janeiro e não estamos nem perto do Reino da Dinamarca, mas a caveira de Yorik, símbolo da falência da ação de Hamlet, virou, segundo a Justiça carioca, a minha bunda.


Gerald Thomas é dramaturgo


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