|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
CARLOS HEITOR CONY
A primeira noite em Paris
O ônibus da Air France me
deixa na gare dos Inválidos,
"Invalides", com mais um inválido agora. Retiro minhas duas
malas, dou gorjeta ao homem que
me ajuda, olho em torno, vejo a
placa em cima de um poste, "Tête
de station", podia arranjar um
táxi.
O pai fizera recomendações, a
mãe outras tantas. Mas tanto o
pai como a mãe e, sobretudo, as
recomendações ficavam agora do
outro lado do mundo, a mais de
oito milhas de distância. Não pretendo medir nos mapas os dois
pontos, Rio e Paris. O fato é que
estava sozinho, com duas malas e
um passado; pouco, mas bastante.
Um passado que devia ser banal, sou um homem de 17 anos e
talvez nem seja exatamente um
homem. Um projeto, um croqui
com linhas provisórias, descartáveis. De qualquer forma, consegui
roncar feio e grosso em cima do
pai e consegui o que desejava. Estou só e poderoso. Tão poderoso
que posso jogar fora um destino.
O meu destino.
- "Rue de La Harpe".
Quem foi La Harpe? Não era essa a minha direção. O pai recomendara um outro hotel, para as
bandas da Opera, um quatro estrelas na rue Scribe, esse eu sei
quem é, um cara que escrevia libretos de ópera, o pai gostava de
óperas. Chegou a fazer reserva,
para o mês dará um pulo aqui e
me arranjará um estúdio onde
possa ficar mais tempo. Não o
contrariei. Ele tem direitos e dinheiro para me administrar. Mas
eu me considero inadministrável,
por isso estou aqui, sozinho com
duas malas, na rua de La Harpe.
Tomei informações, o Mauricio
passou alguns anos em Paris, me
deu as dicas, nada com os bairros
burgueses (ele dizia que nada
mais decadente, embora numeroso, do que um burguês na França)
-eu devia ficar mesmo pelo
"quartier", não precisava nem
acrescentar o "latin", bastava falar no "quartier" e todos compreenderiam que era o "latin".
Zona pesada, gente de todo o
mundo, estudantes de tudo e de
nada, exilados, muito argelino,
muito sul-americano, pouco dinheiro, um pouco de sordidez, isso criava uma atmosfera anacrônica, era bem a Paris à antiga, o
pai gostava de ouvir o segundo
ato de "La Bohème", o Café Momus, pintores e poetas, prostitutas
e filósofos -uma Paris que não
existe mais e talvez nunca tenha
existido. E lá vou eu, rue de La
Harpe, quase paralela ao Boulevard Saint-Michel, por ali há hotéis baratos, meio sórdidos.
O táxi faz curvas pelas ruas escuras da cidade. Deixei no Rio o
verão, aqui se inicia o inverno,
não fazia sentido atravessar o
oceano para vir suar em Paris, os
franceses dizem "bon soir", mas é
outro tipo de suor, nem suor de
verdade é. Daqui a duas semanas,
será o Natal e aí o frio ficará terrível -é o que todos me garantiram lá no Rio. Bem, não morrerei
gelado numa água-furtada nem
queimarei meus cadernos, roupas
e os móveis que não tenho para
fazer fogo na lareira, como em
"La Bohème". Estou com dinheiro, o pai arranjou o "melhor" -e
o melhor foram os dólares.
O motorista avisa que estamos
na rue de La Harpe, deixamos para trás o Boulevard Saint-Germain. É uma rua curta, acaba logo ali. Há vários hotéis, Mauricio
me falou num, é esse aqui, Hotel
du Levant -há o letreiro iluminando a fachada. O pai ficará envergonhado ao saber que tem o filho hospedado numa espelunca.
Assino as fichas na portaria, peço uma água mineral, Vitel ou
Evian, para mim dá na mesma
-é o que informo ao porteiro da
noite. Estou com a boca ressecada. No elevador, não cabem as
malas -um rapaz sonolento as
leva pelas escadas. O quarto é
amplo, antigo, cheirando a mofo.
Antes de fechar a porta, um sujeito sai do banheiro que há no corredor. É um negro alto, magro, de
óculos escuros, apesar de ser noite. Fiquei em apartamento com
banheiro privativo, dá a impressão de limpo. Calefação razoável.
Durante a viagem, imaginei como seria a primeira noite em Paris. Tomaria um banho e sairia
para comer qualquer coisa num
bistrô ainda aberto. Mas estava
cansado. Não dormira durante o
vôo, embora o pai tenha me metido na primeira classe. Aproveitei
a noite, a cabine escurecida, para
me masturbar duas vezes, olhando as pernas da aeromoça, que se
chamava Catherine, havia a plaquinha com o nome dela na gola
do uniforme azul da Air France.
Guardei a porra no saquinho
contra o enjôo. Nunca viajara sozinho antes, sempre na base da
família que viaja unida permanece unida.
Amanhã pensarei no que me
aconteceu para estar aqui sozinho, num hotel de três estrelas na
rue de La Harpe, 5éme arrondissement. Há um bloco na mesinha-de-cabeceira, apanho a caneta e escrevo em letras de imprensa: "Amanhã terei tempo para tudo". A folha não fica em pé
em nenhum canto. Amanhã vou
comprar uma fita durex e a colocarei no espelho em frente à cama. Amanhã terei tempo até para
comprar uma fita durex. Tirei os
sapatos e, com a mesma roupa
com que viajara, caí na cama.
Apaguei a luz. Paris nem doía naquela noite. Eu não precisava dela. Por maior que fosse, era pequena para mim.
Texto Anterior: Música: Série ouve a terceira geração da bossa nova Próximo Texto: Panorâmica - Música 1: Nasce filho da cantora Britney Spears Índice
|