São Paulo, sexta-feira, 16 de setembro de 2005

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CARLOS HEITOR CONY

A primeira noite em Paris

O ônibus da Air France me deixa na gare dos Inválidos, "Invalides", com mais um inválido agora. Retiro minhas duas malas, dou gorjeta ao homem que me ajuda, olho em torno, vejo a placa em cima de um poste, "Tête de station", podia arranjar um táxi.
O pai fizera recomendações, a mãe outras tantas. Mas tanto o pai como a mãe e, sobretudo, as recomendações ficavam agora do outro lado do mundo, a mais de oito milhas de distância. Não pretendo medir nos mapas os dois pontos, Rio e Paris. O fato é que estava sozinho, com duas malas e um passado; pouco, mas bastante.
Um passado que devia ser banal, sou um homem de 17 anos e talvez nem seja exatamente um homem. Um projeto, um croqui com linhas provisórias, descartáveis. De qualquer forma, consegui roncar feio e grosso em cima do pai e consegui o que desejava. Estou só e poderoso. Tão poderoso que posso jogar fora um destino. O meu destino.
- "Rue de La Harpe".
Quem foi La Harpe? Não era essa a minha direção. O pai recomendara um outro hotel, para as bandas da Opera, um quatro estrelas na rue Scribe, esse eu sei quem é, um cara que escrevia libretos de ópera, o pai gostava de óperas. Chegou a fazer reserva, para o mês dará um pulo aqui e me arranjará um estúdio onde possa ficar mais tempo. Não o contrariei. Ele tem direitos e dinheiro para me administrar. Mas eu me considero inadministrável, por isso estou aqui, sozinho com duas malas, na rua de La Harpe. Tomei informações, o Mauricio passou alguns anos em Paris, me deu as dicas, nada com os bairros burgueses (ele dizia que nada mais decadente, embora numeroso, do que um burguês na França) -eu devia ficar mesmo pelo "quartier", não precisava nem acrescentar o "latin", bastava falar no "quartier" e todos compreenderiam que era o "latin". Zona pesada, gente de todo o mundo, estudantes de tudo e de nada, exilados, muito argelino, muito sul-americano, pouco dinheiro, um pouco de sordidez, isso criava uma atmosfera anacrônica, era bem a Paris à antiga, o pai gostava de ouvir o segundo ato de "La Bohème", o Café Momus, pintores e poetas, prostitutas e filósofos -uma Paris que não existe mais e talvez nunca tenha existido. E lá vou eu, rue de La Harpe, quase paralela ao Boulevard Saint-Michel, por ali há hotéis baratos, meio sórdidos.
O táxi faz curvas pelas ruas escuras da cidade. Deixei no Rio o verão, aqui se inicia o inverno, não fazia sentido atravessar o oceano para vir suar em Paris, os franceses dizem "bon soir", mas é outro tipo de suor, nem suor de verdade é. Daqui a duas semanas, será o Natal e aí o frio ficará terrível -é o que todos me garantiram lá no Rio. Bem, não morrerei gelado numa água-furtada nem queimarei meus cadernos, roupas e os móveis que não tenho para fazer fogo na lareira, como em "La Bohème". Estou com dinheiro, o pai arranjou o "melhor" -e o melhor foram os dólares.
O motorista avisa que estamos na rue de La Harpe, deixamos para trás o Boulevard Saint-Germain. É uma rua curta, acaba logo ali. Há vários hotéis, Mauricio me falou num, é esse aqui, Hotel du Levant -há o letreiro iluminando a fachada. O pai ficará envergonhado ao saber que tem o filho hospedado numa espelunca.
Assino as fichas na portaria, peço uma água mineral, Vitel ou Evian, para mim dá na mesma -é o que informo ao porteiro da noite. Estou com a boca ressecada. No elevador, não cabem as malas -um rapaz sonolento as leva pelas escadas. O quarto é amplo, antigo, cheirando a mofo. Antes de fechar a porta, um sujeito sai do banheiro que há no corredor. É um negro alto, magro, de óculos escuros, apesar de ser noite. Fiquei em apartamento com banheiro privativo, dá a impressão de limpo. Calefação razoável.
Durante a viagem, imaginei como seria a primeira noite em Paris. Tomaria um banho e sairia para comer qualquer coisa num bistrô ainda aberto. Mas estava cansado. Não dormira durante o vôo, embora o pai tenha me metido na primeira classe. Aproveitei a noite, a cabine escurecida, para me masturbar duas vezes, olhando as pernas da aeromoça, que se chamava Catherine, havia a plaquinha com o nome dela na gola do uniforme azul da Air France. Guardei a porra no saquinho contra o enjôo. Nunca viajara sozinho antes, sempre na base da família que viaja unida permanece unida.
Amanhã pensarei no que me aconteceu para estar aqui sozinho, num hotel de três estrelas na rue de La Harpe, 5éme arrondissement. Há um bloco na mesinha-de-cabeceira, apanho a caneta e escrevo em letras de imprensa: "Amanhã terei tempo para tudo". A folha não fica em pé em nenhum canto. Amanhã vou comprar uma fita durex e a colocarei no espelho em frente à cama. Amanhã terei tempo até para comprar uma fita durex. Tirei os sapatos e, com a mesma roupa com que viajara, caí na cama. Apaguei a luz. Paris nem doía naquela noite. Eu não precisava dela. Por maior que fosse, era pequena para mim.


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