São Paulo, sábado, 16 de setembro de 2006

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FÁBIO DE SOUZA ANDRADE

Leitores de boca em boca

Escritor para escritores, o romancista argentino Ricardo Piglia também soube fazer-se leitor para leitores

NO LIVRO de ensaios "Formas Breves", muito à vontade entre a criação e a teoria, o argentino Ricardo Piglia evoca uma cena emblemática da biografia de Nietzsche em Turim: diante de um cavalo caído, duramente castigado por um cocheiro, o filósofo expressa uma súbita e violenta comoção, abraçando e beijando o animal, às lágrimas. Para além da força reveladora que a imagem guarda para a história da filosofia no Ocidente, chama a atenção do autor de "Cidade Ausente" o bovarismo acidental de Nietzsche que, sem se dar conta, reencena em detalhes um sonho narrado em "Crime e Castigo", fazendo seu o papel de Raskólnikov. Na formulação borgiana de Piglia, "a teoria do Eterno Retorno pode ser vista como uma descrição do efeito de falsa memória que a leitura produz".
Obcecado por esses saltos e iluminações recíprocas entre os mundos imaginários e a história, individual e coletiva, no recém-lançado "O Último Leitor", Piglia rastreia agora figurações concretas e variadas que, na própria literatura, assume o verdadeiro fiador da existência dos livros, o leitor empenhado. A obsessão não é novidade. Está no centro de "Respiração Artificial", romance de 1980, em que todas as relações entre os personagens -um escritor e seu tio historiador; um personagem do século 19, entre traidor e herói, Enrique Osorio; um intelectual polonês no exílio- dependem diretamente da leitura. Emilio Renzi, o jovem autor que reaparece regularmente em sua obra, conhece o tio pelas cartas; este, por sua vez, investiga Osório por documentos e Tardewski, o cético professor de filosofia, esbarra na revelação de sua vida -um suposto encontro entre Hitler e Kafka- na marginália de um livro de biblioteca que chega a suas mãos.
Borges quase cego na biblioteca, perdido em meio a uma série infinita de universos alternativos, Robinson Crusoe, náufrago que se aferra à palavra escrita para sobreviver, são traduções dos aspectos essenciais da leitura que interessam a Piglia: o isolamento e a confusão de escalas entre a ficção e o real. Movendo-se entre figuras arquetípicas, como o Quixote, Emma Bovary ou Anna Kariênina, o livro tem pontos altos na perseguição das relações entre experiência e leitura em na história de dois percursos biográficos antípodas: o de Franz Kafka e o de Ernesto "Che" Guevara. Em Kafka, nos diários e na correspondência com Felice, aparece o escritor em imagem quase mítica do ato de ruptura, colocar-se à margem, que a fidelidade máxima à obra exige. Em Guevara, também nos diários, o testemunho da busca deslocada pelo recolhimento e silêncio necessários à leitura em meio à vida de combates. Escritor para escritores, Piglia também soube fazer-se leitor para leitores.


O ÚLTIMO LEITOR     
Autor: Ricardo Piglia
Tradução: Heloísa Jahn
Editora: Companhia das Letras
Quanto: R$ 35,50 (186 págs.)

RESPIRAÇÃO ARTIFICIAL     
Autor: Ricardo Piglia
Tradução: Heloísa Jahn
Editora: Iluminuras
Quanto: R$ 35 (206 págs.)


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