São Paulo, sábado, 16 de setembro de 2006

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Livros

Crítica/romance

Nazarian narra com humor as memórias de um crocodilo urbano

ADRIANO SCHWARTZ
ESPECIAL PARA A FOLHA

Não deixa de ser curioso que "Mastigando Humanos", novo livro de Santiago Nazarian, seja lançado na mesma época em que os cinemas brasileiros passam o filme "A Dama na Água". Assim como M. Night Shyamalan, o escritor não tem nenhum medo da ficção, de criar e escapar das inúmeras fórmulas disponíveis e sempre tão utilizadas.
O tema é inclusive discutido pelo personagem principal da obra, que, de seu ponto de vista bem peculiar, como se verá a seguir, se pergunta: "Se a fome é o impulso básico da existência, o freio da existência seria o medo? Ou a saciedade?".
A semelhança com Shyamalan, contudo, pára aí, uma vez que o diretor indiano oscila com freqüência entre soluções narrativas geniais e o alegorismo fácil, problema de que se tem nesse último filme um bom exemplo (entre as suas produções mais recentes, a que escapa com brilhantismo disso é "A Vila"). Já Nazarian não corre esse risco, ao insistir na maior materialidade possível em sua criação (nada mais material, aliás, do que a constatação de que o protagonista do romance termina por comer quase todos os outros personagens com que cruza ao longo do enredo, os humanos, como avisa o título, e os não-humanos).

Do esgoto à academia
Trata-se, afinal de contas, de um crocodilo, de quem acompanhamos as memórias, desde a época em que viveu no submundo, o esgoto de uma cidade grande, em meio a latas de cerveja e "junkie food", até o momento em que experimenta -e nela fracassa- a função de professor universitário, como coordenador na área de humanidades, preocupando-se especificamente com a questão da "racionalidade": ""Como assim", eu franziria minha testa se tivesse uma. "Digo, humanidades animais... o caráter humano em vocês... A racionalidade, sim, a racionalidade talvez". Ele criava áreas e cargos como um adolescente arruma lugar para guardar os CDs".
O autor conduz com graça e vivacidade as aventuras existenciais de seu personagem, em seus encontros e reencontros com um esquilo e seu séquito de ratos, um sapo fumante, um lagostim misterioso, um menino de rua, inserindo assim seu texto numa riquíssima linhagem literária que, da Antigüidade aos dias de hoje, produziu uma série de relatos em que animais dominam a cena (para lembrar duas obras-primas do século 20, "A Revolução dos Bichos", de George Orwell, e "Um Relatório para uma Academia", de Franz Kafka).

Gordura reflexiva
Falta a "Mastigando Humanos" um pouco mais de cuidado com a linguagem, fato que talvez possa ser percebido no descompasso entre parágrafos e orações invariavelmente curtos e uma certa gordura reflexiva que poderia ser atenuada se fosse assumida, incorporada, na própria construção textual. Mas isso diminui só uma pequena dose dos méritos deste livro divertido e inteligente.


ADRIANO SCHWARTZ é professor de literatura da Escola de Artes, Ciências e Humanidades da USP e autor de "O Abismo Invertido - Pessoa, Borges e A Inquietude do Romance em "O Ano da Morte de Ricardo Reis'" (Globo).

MASTIGANDO HUMANOS    
Autor: Santiago Nazarian
Editora: Nova Fronteira
Quanto: R$ 24,90 (224 págs.)
Lançamento: na quarta, às 18h30, na Livraria da Vila (r. Fradique Coutinho, 915, tel. 0/xx/11/3814-5811)


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