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Livros
Crítica/romance
Nazarian narra com humor as memórias de um crocodilo urbano
ADRIANO SCHWARTZ
ESPECIAL PARA A FOLHA
Não deixa de ser curioso
que "Mastigando Humanos", novo livro de
Santiago Nazarian, seja lançado na mesma época em que os
cinemas brasileiros passam o
filme "A Dama na Água". Assim
como M. Night Shyamalan, o
escritor não tem nenhum medo da ficção, de criar e escapar
das inúmeras fórmulas disponíveis e sempre tão utilizadas.
O tema é inclusive discutido
pelo personagem principal da
obra, que, de seu ponto de vista
bem peculiar, como se verá a
seguir, se pergunta: "Se a fome
é o impulso básico da existência, o freio da existência seria o
medo? Ou a saciedade?".
A semelhança com Shyamalan, contudo, pára aí, uma vez
que o diretor indiano oscila
com freqüência entre soluções
narrativas geniais e o alegorismo fácil, problema de que se
tem nesse último filme um
bom exemplo (entre as suas
produções mais recentes, a que
escapa com brilhantismo disso
é "A Vila"). Já Nazarian não
corre esse risco, ao insistir na
maior materialidade possível
em sua criação (nada mais material, aliás, do que a constatação de que o protagonista do
romance termina por comer
quase todos os outros personagens com que cruza ao longo do
enredo, os humanos, como avisa o título, e os não-humanos).
Do esgoto à academia
Trata-se, afinal de contas, de
um crocodilo, de quem acompanhamos as memórias, desde
a época em que viveu no submundo, o esgoto de uma cidade
grande, em meio a latas de cerveja e "junkie food", até o momento em que experimenta -e
nela fracassa- a função de professor universitário, como
coordenador na área de humanidades, preocupando-se especificamente com a questão da
"racionalidade": ""Como assim", eu franziria minha testa se
tivesse uma. "Digo, humanidades animais... o caráter humano
em vocês... A racionalidade,
sim, a racionalidade talvez". Ele
criava áreas e cargos como um
adolescente arruma lugar para
guardar os CDs".
O autor conduz com graça e
vivacidade as aventuras existenciais de seu personagem, em
seus encontros e reencontros
com um esquilo e seu séquito
de ratos, um sapo fumante, um
lagostim misterioso, um menino de rua, inserindo assim seu
texto numa riquíssima linhagem literária que, da Antigüidade aos dias de hoje, produziu
uma série de relatos em que
animais dominam a cena (para
lembrar duas obras-primas do
século 20, "A Revolução dos Bichos", de George Orwell, e "Um
Relatório para uma Academia",
de Franz Kafka).
Gordura reflexiva
Falta a "Mastigando Humanos" um pouco mais de cuidado
com a linguagem, fato que talvez possa ser percebido no descompasso entre parágrafos e
orações invariavelmente curtos e uma certa gordura reflexiva que poderia ser atenuada se
fosse assumida, incorporada,
na própria construção textual.
Mas isso diminui só uma pequena dose dos méritos deste
livro divertido e inteligente.
ADRIANO SCHWARTZ é professor de literatura
da Escola de Artes, Ciências e Humanidades da
USP e autor de "O Abismo Invertido - Pessoa,
Borges e A Inquietude do Romance em "O Ano
da Morte de Ricardo Reis'" (Globo).
MASTIGANDO HUMANOS
Autor: Santiago Nazarian
Editora: Nova Fronteira
Quanto: R$ 24,90 (224 págs.)
Lançamento: na quarta, às 18h30, na
Livraria da Vila (r. Fradique Coutinho,
915, tel. 0/xx/11/3814-5811)
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