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"INQUIETUDE"
Libelo contra a "fadiga"
INÁCIO ARAUJO
Crítico de Cinema
Manoel de Oliveira disse certa
vez que o cinema sofre de fadiga, e
que é preciso lutar contra ela.
Essa fadiga talvez faça com que,
nas duas últimas décadas, o cinema mais estimulante tenha vindo
de onde ninguém esperava: Irã,
Hong Kong e, por que não, o Portugal de Oliveira, João Cesar Monteiro, João Botelho.
E onde essa fadiga começa? Pelos
realizadores, pela crítica, pelos espectadores? O certo é que ela está
disseminada, a tal ponto que "Inquietude" parece um objeto estranho, pelo atrevimento, pelo rigor,
pela liberdade que Oliveira se outorga.
O filme se divide em três histórias em que a idéia de eternidade
do homem é concernida. Na primeira, um velho cientista roda por
um aposento, agitando sua bengala. Pouco depois invade a sala em
que está um outro homem e sentencia: "Mata-te".
Saberemos depois que o homem
é seu filho, também um cientista
célebre. A preocupação do pai é
que o filho morra em plena glória e
garanta, assim, a eternidade, e não
experimente o esquecimento.
Essa é a história, que em si não
tem nada de mais. O que impressiona desde o início é um tom incomodamente teatral, a sensação
de estarmos diante de uma peça de
teatro (só ao fim do episódio teremos a certeza de que se trata mesmo de uma peça). Essa peça está
sendo assistida por dois jovens,
um dos quais se apaixona por uma
bela cortesã. No auge de sua paixão, um amigo introduz uma fábula na história: é a terceira narrativa
no interior do filme.
O mais provocante, no caso, é
que nenhuma das três histórias remete ao cinema: passamos do teatro ao romance (neste segundo
com referências claras à pintura), e
daí ao mito, como se a realidade
(matéria mais frequente do cinema) não existisse, ou antes, como
se estivesse em outra parte. Na platéia, talvez. Com isso, Oliveira, do
alto de seus mais de 90 anos, cria
mais uma obra de juventude quase
insuperável.
Não um filme fácil, é certo, mas
um enigma, na medida em que
desloca o espectador continuamente, sem nunca permitir que ele
se fixe, confortável, em sua poltrona. Assim como os personagens
buscam eternizar-se pela morte,
pelo amor ou pela lenda, somos
chamados a partilhar essas três dimensões por meio do teatro, do romance e da narrativa mítica, com o
cinema como uma espécie de observador, que registra aquilo que
ele próprio não é.
Mas será que não é? Haveria uma
realidade intrínseca ao cinema,
que não fosse apenas realismo?
Ou a realidade do cinema, mais
do que realista, consistiria na capacidade de criar uma verdade, pelo
encontro de elementos tirados da
vida real?
Nesse caso, por que o teatro, a
narrativa romanesca ou mitológica seriam "irreais", se participam
do mundo tanto quanto qualquer
outra coisa ou forma que aspire à
verossimilhança cinematográfica?
São algumas das questões que o
filme deixa no ar, provocativamente. Duplicadas, talvez, pelo
momento em que o próprio diretor aparece deslizando em uma
pista de dança, bailando um tango,
como a contradizer tudo o mais e
afirmando, por um minuto, que a
vida é um instante, e que talvez a
eternidade do homem esteja em
sua capacidade de, por um momento, existir plenamente.
"Inquietude" é um filme tão difícil quanto brincalhão, que sacode
o espectador propondo-lhe uma
indagação sobre a eternidade, ao
mesmo tempo em que o lança, de
maneira inesperada, na beleza da
fugacidade. Não é um prato pronto, mas um quebra-cabeça disposto a varrer a idéia de "fadiga" a que
Oliveira se referiu.
²
Filme: Inquietude
Produção: Portugal, 1998
Direção: Manoel de Oliveira
Com: Luis Miguel Cintra, José Pinto
Quando: hoje, às 21h10, no Vitrine
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