São Paulo, sexta, 16 de outubro de 1998

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"INQUIETUDE"
Libelo contra a "fadiga"

INÁCIO ARAUJO
Crítico de Cinema

Manoel de Oliveira disse certa vez que o cinema sofre de fadiga, e que é preciso lutar contra ela.
Essa fadiga talvez faça com que, nas duas últimas décadas, o cinema mais estimulante tenha vindo de onde ninguém esperava: Irã, Hong Kong e, por que não, o Portugal de Oliveira, João Cesar Monteiro, João Botelho.
E onde essa fadiga começa? Pelos realizadores, pela crítica, pelos espectadores? O certo é que ela está disseminada, a tal ponto que "Inquietude" parece um objeto estranho, pelo atrevimento, pelo rigor, pela liberdade que Oliveira se outorga.
O filme se divide em três histórias em que a idéia de eternidade do homem é concernida. Na primeira, um velho cientista roda por um aposento, agitando sua bengala. Pouco depois invade a sala em que está um outro homem e sentencia: "Mata-te".
Saberemos depois que o homem é seu filho, também um cientista célebre. A preocupação do pai é que o filho morra em plena glória e garanta, assim, a eternidade, e não experimente o esquecimento.
Essa é a história, que em si não tem nada de mais. O que impressiona desde o início é um tom incomodamente teatral, a sensação de estarmos diante de uma peça de teatro (só ao fim do episódio teremos a certeza de que se trata mesmo de uma peça). Essa peça está sendo assistida por dois jovens, um dos quais se apaixona por uma bela cortesã. No auge de sua paixão, um amigo introduz uma fábula na história: é a terceira narrativa no interior do filme.
O mais provocante, no caso, é que nenhuma das três histórias remete ao cinema: passamos do teatro ao romance (neste segundo com referências claras à pintura), e daí ao mito, como se a realidade (matéria mais frequente do cinema) não existisse, ou antes, como se estivesse em outra parte. Na platéia, talvez. Com isso, Oliveira, do alto de seus mais de 90 anos, cria mais uma obra de juventude quase insuperável.
Não um filme fácil, é certo, mas um enigma, na medida em que desloca o espectador continuamente, sem nunca permitir que ele se fixe, confortável, em sua poltrona. Assim como os personagens buscam eternizar-se pela morte, pelo amor ou pela lenda, somos chamados a partilhar essas três dimensões por meio do teatro, do romance e da narrativa mítica, com o cinema como uma espécie de observador, que registra aquilo que ele próprio não é.
Mas será que não é? Haveria uma realidade intrínseca ao cinema, que não fosse apenas realismo?
Ou a realidade do cinema, mais do que realista, consistiria na capacidade de criar uma verdade, pelo encontro de elementos tirados da vida real?
Nesse caso, por que o teatro, a narrativa romanesca ou mitológica seriam "irreais", se participam do mundo tanto quanto qualquer outra coisa ou forma que aspire à verossimilhança cinematográfica?
São algumas das questões que o filme deixa no ar, provocativamente. Duplicadas, talvez, pelo momento em que o próprio diretor aparece deslizando em uma pista de dança, bailando um tango, como a contradizer tudo o mais e afirmando, por um minuto, que a vida é um instante, e que talvez a eternidade do homem esteja em sua capacidade de, por um momento, existir plenamente.
"Inquietude" é um filme tão difícil quanto brincalhão, que sacode o espectador propondo-lhe uma indagação sobre a eternidade, ao mesmo tempo em que o lança, de maneira inesperada, na beleza da fugacidade. Não é um prato pronto, mas um quebra-cabeça disposto a varrer a idéia de "fadiga" a que Oliveira se referiu.
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Filme: Inquietude Produção: Portugal, 1998 Direção: Manoel de Oliveira Com: Luis Miguel Cintra, José Pinto Quando: hoje, às 21h10, no Vitrine


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