|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
LIVROS/LANÇAMENTOS
"POUCO AMOR NÃO É AMOR"
Livro reúne contos publicados nos anos 50
Nelson Rodrigues maneja estilos para desvelar o Rio
Folha Imagem - 16.jun.1950
|
Imagem do dia da inauguração do estádio do Maracanã, tema de crônicas de Nelson Rodrigues |
MARCELO PEN
CRÍTICO DA FOLHA
Uma mulher se desespera
ao cismar que tem câncer.
Consulta-se com um médico-galã
e implora: "Só me diga a verdade". Com o resultado dos exames
em mãos, ele a chama ao consultório: é câncer. Ela, aliviada: "Posso fazer o que nunca fiz!". Ele, declarando-se apaixonado, dá-lhe
"um beijo de louco". Depois, confessa: não é câncer, é úlcera. E ela:
"Bendita úlcera!".
Esse é o primeiro dos contos
que integra "Pouco Amor Não É
Amor", conjunto de ficções, inéditas em livro, publicadas por
Nelson Rodrigues no semanário
dominical "Jornal da Semana
Flan", entre 1953 e 1954. A história
revela alguns dos procedimentos
estilísticos comuns ao autor, que
já havia escrito a peça "Álbum de
Família" e sua famosa coluna no
jornal "Última Hora", "A Vida como Ela É...".
Os recursos de estilo podem ser
representados por três figuras de
linguagem: o oximoro, a hipérbole e a ironia. O oximoro, procedimento que reúne conceitos contraditórios, surge aqui na interseção entre vida e morte. Só ao julgar-se uma "quase-morta" é que a
mulher afirma que "agora vive".
A hipérbole, a figura do exagero,
verifica-se no comportamento
paroxístico dos personagens,
sempre tomados por emoções
acaçapantes, por paixões incontroláveis.
Por fim, a ironia, nesse conto
destilada em prol de uma grande
dose de humor. Só traindo a confiança da paciente, o médico é capaz de conquistá-la.
A mulher, desreprimida ao se
ver quase morta, mantém o comportamento livre mesmo quando
se descobre bastante viva. Por
conta da natureza trágica de muitas histórias de Nelson, tendemos
a esquecer seu lado mais bem-humorado.
Vejamos outros exemplos. Moça engravidada por rapaz rico e
sem caráter ensina-lhe uma lição
ao dizer ao juiz de casamento que
com aquele tipo não se casa. Mulher só é capaz de voltar a amar o
marido traidor depois que ela
mesmo o trai. Homem paga ao
amigo para seduzir a mulher infiel, para que ela não fuja com o
amante. Mulher degola o marido
com medo de que ele a interne
num manicômio.
O livro termina com o conto "A
Morte Azul: Na Flor do Maracujá", na verdade escrito antes da série "Pouco Amor Não É Amor". A
história -de uma negra que dá à
luz num banheiro de gafieira e
abandona o recém-nascido na
pia, para ir dançar seu último
samba fatal- é a gênese do anti-herói de "Boca de Ouro".
Nessa peça, escrita seis anos depois, uma parcela do comportamento do personagem Boca de
Ouro pode ser explicado em função desse nascimento densamente significativo: ao mesmo tempo
sujo e expiatório (a pia, sobre a
qual a mãe deixa a água correr),
ritualístico e desamparado, simbólico e realista.
Muito mais bem acabados do
que seus romances da mesma
época e dos que assinou com o
pseudônimo de Suzana Flag, cujas soluções romanescas soam artificiosas demais, os contos de
"Pouco Amor Não É Amor" se
aliam às histórias de "A Vida como Ela É..." ao revelar uma parcela da sociedade carioca da década
de 50.
Não se trata, é claro, do mero retrato da crônica. Nelson descreve
contínuos e desempregados, sambistas e socialites, moçoilas e gaviões, donas-de-casa e aposentados não exatamente como eram,
mas como seriam se libertados da
capa social e revelados em seu aspecto mais obsessivo, contraditório e sem dúvida cômico.
Pouco Amor Não É Amor
Autor: Nelson Rodrigues
Lançamento: Companhia das Letras
Quanto: R$ 29 (228 págs.)
Texto Anterior: Evento: Filme do francês Guédiguian tem sessão gratuita Próximo Texto: "Azul e Dura": Bracher é intensa e precisa em obra sobre dilaceramento existencial Índice
|