São Paulo, sábado, 16 de novembro de 2002

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

LIVROS/LANÇAMENTOS

"POUCO AMOR NÃO É AMOR"

Livro reúne contos publicados nos anos 50

Nelson Rodrigues maneja estilos para desvelar o Rio

Folha Imagem - 16.jun.1950
Imagem do dia da inauguração do estádio do Maracanã, tema de crônicas de Nelson Rodrigues


MARCELO PEN
CRÍTICO DA FOLHA

Uma mulher se desespera ao cismar que tem câncer. Consulta-se com um médico-galã e implora: "Só me diga a verdade". Com o resultado dos exames em mãos, ele a chama ao consultório: é câncer. Ela, aliviada: "Posso fazer o que nunca fiz!". Ele, declarando-se apaixonado, dá-lhe "um beijo de louco". Depois, confessa: não é câncer, é úlcera. E ela: "Bendita úlcera!".
Esse é o primeiro dos contos que integra "Pouco Amor Não É Amor", conjunto de ficções, inéditas em livro, publicadas por Nelson Rodrigues no semanário dominical "Jornal da Semana Flan", entre 1953 e 1954. A história revela alguns dos procedimentos estilísticos comuns ao autor, que já havia escrito a peça "Álbum de Família" e sua famosa coluna no jornal "Última Hora", "A Vida como Ela É...".
Os recursos de estilo podem ser representados por três figuras de linguagem: o oximoro, a hipérbole e a ironia. O oximoro, procedimento que reúne conceitos contraditórios, surge aqui na interseção entre vida e morte. Só ao julgar-se uma "quase-morta" é que a mulher afirma que "agora vive". A hipérbole, a figura do exagero, verifica-se no comportamento paroxístico dos personagens, sempre tomados por emoções acaçapantes, por paixões incontroláveis.
Por fim, a ironia, nesse conto destilada em prol de uma grande dose de humor. Só traindo a confiança da paciente, o médico é capaz de conquistá-la.
A mulher, desreprimida ao se ver quase morta, mantém o comportamento livre mesmo quando se descobre bastante viva. Por conta da natureza trágica de muitas histórias de Nelson, tendemos a esquecer seu lado mais bem-humorado.
Vejamos outros exemplos. Moça engravidada por rapaz rico e sem caráter ensina-lhe uma lição ao dizer ao juiz de casamento que com aquele tipo não se casa. Mulher só é capaz de voltar a amar o marido traidor depois que ela mesmo o trai. Homem paga ao amigo para seduzir a mulher infiel, para que ela não fuja com o amante. Mulher degola o marido com medo de que ele a interne num manicômio.
O livro termina com o conto "A Morte Azul: Na Flor do Maracujá", na verdade escrito antes da série "Pouco Amor Não É Amor". A história -de uma negra que dá à luz num banheiro de gafieira e abandona o recém-nascido na pia, para ir dançar seu último samba fatal- é a gênese do anti-herói de "Boca de Ouro".
Nessa peça, escrita seis anos depois, uma parcela do comportamento do personagem Boca de Ouro pode ser explicado em função desse nascimento densamente significativo: ao mesmo tempo sujo e expiatório (a pia, sobre a qual a mãe deixa a água correr), ritualístico e desamparado, simbólico e realista.
Muito mais bem acabados do que seus romances da mesma época e dos que assinou com o pseudônimo de Suzana Flag, cujas soluções romanescas soam artificiosas demais, os contos de "Pouco Amor Não É Amor" se aliam às histórias de "A Vida como Ela É..." ao revelar uma parcela da sociedade carioca da década de 50.
Não se trata, é claro, do mero retrato da crônica. Nelson descreve contínuos e desempregados, sambistas e socialites, moçoilas e gaviões, donas-de-casa e aposentados não exatamente como eram, mas como seriam se libertados da capa social e revelados em seu aspecto mais obsessivo, contraditório e sem dúvida cômico.


Pouco Amor Não É Amor
   
Autor: Nelson Rodrigues
Lançamento: Companhia das Letras
Quanto: R$ 29 (228 págs.)



Texto Anterior: Evento: Filme do francês Guédiguian tem sessão gratuita
Próximo Texto: "Azul e Dura": Bracher é intensa e precisa em obra sobre dilaceramento existencial
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.