São Paulo, sábado, 16 de novembro de 2002

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"AZUL E DURA"

Bracher é intensa e precisa em obra sobre dilaceramento existencial

CRÍTICO DA FOLHA

Poucas vezes é dado ao crítico o contentamento de poder recomendar sem pejo um novo escritor e sua ficção de estréia. Dificuldades de toda sorte se apresentam nesses casos ao autor, em sua busca da perfeição técnica, e ao analista, em sua procura pela objetividade. Mas a maioria dos obstáculos é superada diante de "Azul e Dura", primeiro romance da paulistana Beatriz Bracher.
O enredo pode soar banal. A bem-nascida Mariana tenta superar, nos Alpes suíços, o trauma de sua separação e de um atropelamento (causado por ela) que resultou na morte da vítima, uma moça deficiente mental. A superação passa pelo confronto com o passado e consigo própria; o que só é possível por meio da escrita, pela transformação do eu em personagem ficcional.
A narrativa corre solta por diversos momentos do passado: a infância e adolescência no seio de uma família tradicional; a formação engajada numa escola de cinema; o casamento que aos poucos embota-lhe a dignidade; o acidente e o processo jurídico. Há também o tempo presente, em que a protagonista-narradora se empenha em organizar o caos no qual sua vida se converteu.
Como na faculdade, quando montava seus primeiros filmes, precisa arranjar na moviola romanesca "sequências (...) embaralhadas, algumas nítidas e até com cheiro, mas sem continuidade". O embaralhamento a angustia. Mariana carece de valores firmes como verdade e justiça, mas não os encontra. O inquérito policial beneficia escandalosamente a ré, acusando o pai da vítima, um velho pobre e bêbado, de negligência. Mariana se revolta, mas não consegue superar o peso da tradição imoral de que faz parte.
O resultado só pode ser o esfacelamento. Na narrativa, isso se dá não só pela montagem aparentemente aleatória dos planos-sequência da memória, mas também pela constante reescrita da personagem de acordo com o discurso por meio do qual se representa. Ora lamuriento, ora acusador, ora desesperançado, ora lúcido, ele revela uma Mariana multifacetada em seu dilaceramento existencial. Como diz a personagem a certa altura: "Nada importa quando nada está certo". Beatriz Bracher: intensa e precisa.
(MARCELO PEN)


Azul e Dura
    
Autor: Beatriz Bracher
Lançamento: editora 7 Letras
Quanto: R$ 25 (176 págs.)



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