São Paulo, sábado, 16 de novembro de 2002

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COMENTÁRIO

Déjà vu

MOACYR SCLIAR
COLUNISTA DA FOLHA

Ler um livro que se baseia em uma idéia que tivemos e que já usamos é um pouco como o déjà vu, aquela curiosa sensação de familiaridade que às vezes nos acomete. Com uma diferença crucial: o "déjà vu" não tem suporte na realidade factual. Mas a cópia de uma idéia pode ocorrer, como eu descobri incrédulo, para dizer a verdade, quando fui informado acerca do livro de Yann Martel, "Life of Pi", vencedor do Booker Prize deste ano e baseado, segundo o próprio Martel, em minha novela "Max e os Felinos" ("Max and the Cats"). Obra esta que forneceu ao autor aquilo que ele cripticamente domina de "the spark of life", e que muitos preferiram classificar como plágio.
É plágio? Depende, o que dá margem a uma discussão não apenas literária: nesta época de copyrights, propriedade intelectual é uma coisa séria, e uma ação judicial me foi sugerida. Recusei. Não sou um litigante e acho que a polêmica, quando existe, deve ser mantida no terreno literário.
Isso, apesar de alguns equívocos de Martel, como o de atribuir a John Updike uma desfavorável resenha de meu livro no "New York Times", resenha esta que nunca existiu (se interessa, a resenha foi de Herbert Mitgang e era favorável). Devo dizer também que ele me telefonou, dizendo cordial que "sentia muito". No mesmo dia recebi o livro, de cuja existência até então não tomara conhecimento. Comecei a ler, tentando ser isento.
O que, aliás, não foi difícil. Martel é bom escritor, capaz de envolver, instantaneamente, o leitor. Para começar, o personagem Piscine Molitor Patel -Pi-, é extremamente convincente. Na primeira parte conhecemos esse menino de Pondicherry, Índia, cujo pai dirige um empreendimento pouco usual, um zoológico.
A família decide emigrar para o Canadá. No mesmo navio vão os animais, que têm como destino zôos dos EUA. Há um naufrágio: Pi salva-se, partilhando um barco salva-vidas com um tigre -Richard Parker-, uma hiena, um orangotango e uma zebra. Cumprindo sua função de carnívoro o tigre devora os outros bichos e logo Pi vê-se sozinho com o felino numa jornada que durará 227 dias e termina na costa mexicana.
Pi Patel tem de enfrentar então outras feras: os investigadores não acreditam no garoto. Ele é forçado a inventar outra história, substituindo os animais por seres humanos, numa relação brutal.
A segunda parte do livro corresponde à de "Max e os Felinos". Na primeira, o jovem está na Alemanha nazista, da qual foge, num navio que transporta animais de um zôo; há um naufrágio, e ele se vê partilhando um barco salva-vidas com um jaguar.
Parecido? Bastante. É verdade que os textos são diferentes e que a metáfora funciona, em cada caso, de maneira diversa. A visão religiosa de Martel transparece em seu livro. "Max e os Felinos" foi publicado em 1981, ainda sob a ditadura. Minha geração de escritores foi marcada pelo clima de autoritarismo então reinante e que colocava cada intelectual, cada cidadão, no papel de um náufrago em um bote diante de uma entidade enigmática e ameaçadora. Por outro lado, sou de um grupo humano que foi perseguido e exterminado sob o regime nazista, do qual Max fugiu, para recomeçar a vida no Brasil.
Foi interessante ver a idéia de outra forma. Representa, até certo ponto, um reconhecimento. Perturbado, naturalmente, pela polêmica. Que poderia ser evitada mediante as regras de convivência que até na literatura fazem falta.



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