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COMENTÁRIO
Déjà vu
MOACYR SCLIAR
COLUNISTA DA FOLHA
Ler um livro que se baseia em
uma idéia que tivemos e que
já usamos é um pouco como o déjà vu, aquela curiosa sensação de
familiaridade que às vezes nos
acomete. Com uma diferença crucial: o "déjà vu" não tem suporte
na realidade factual. Mas a cópia
de uma idéia pode ocorrer, como
eu descobri incrédulo, para dizer
a verdade, quando fui informado
acerca do livro de Yann Martel,
"Life of Pi", vencedor do Booker
Prize deste ano e baseado, segundo o próprio Martel, em minha
novela "Max e os Felinos" ("Max
and the Cats"). Obra esta que forneceu ao autor aquilo que ele
cripticamente domina de "the
spark of life", e que muitos preferiram classificar como plágio.
É plágio? Depende, o que dá
margem a uma discussão não
apenas literária: nesta época de
copyrights, propriedade intelectual é uma coisa séria, e uma ação
judicial me foi sugerida. Recusei.
Não sou um litigante e acho que a
polêmica, quando existe, deve ser
mantida no terreno literário.
Isso, apesar de alguns equívocos
de Martel, como o de atribuir a
John Updike uma desfavorável
resenha de meu livro no "New
York Times", resenha esta que
nunca existiu (se interessa, a resenha foi de Herbert Mitgang e era
favorável). Devo dizer também
que ele me telefonou, dizendo
cordial que "sentia muito". No
mesmo dia recebi o livro, de cuja
existência até então não tomara
conhecimento. Comecei a ler,
tentando ser isento.
O que, aliás, não foi difícil. Martel é bom escritor, capaz de envolver, instantaneamente, o leitor.
Para começar, o personagem Piscine Molitor Patel -Pi-, é extremamente convincente. Na primeira parte conhecemos esse menino de Pondicherry, Índia, cujo
pai dirige um empreendimento
pouco usual, um zoológico.
A família decide emigrar para o
Canadá. No mesmo navio vão os
animais, que têm como destino
zôos dos EUA. Há um naufrágio:
Pi salva-se, partilhando um barco
salva-vidas com um tigre -Richard Parker-, uma hiena, um
orangotango e uma zebra. Cumprindo sua função de carnívoro o
tigre devora os outros bichos e logo Pi vê-se sozinho com o felino
numa jornada que durará 227
dias e termina na costa mexicana.
Pi Patel tem de enfrentar então
outras feras: os investigadores
não acreditam no garoto. Ele é
forçado a inventar outra história,
substituindo os animais por seres
humanos, numa relação brutal.
A segunda parte do livro corresponde à de "Max e os Felinos". Na
primeira, o jovem está na Alemanha nazista, da qual foge, num navio que transporta animais de um
zôo; há um naufrágio, e ele se vê
partilhando um barco salva-vidas
com um jaguar.
Parecido? Bastante. É verdade
que os textos são diferentes e que
a metáfora funciona, em cada caso, de maneira diversa. A visão religiosa de Martel transparece em
seu livro. "Max e os Felinos" foi
publicado em 1981, ainda sob a ditadura. Minha geração de escritores foi marcada pelo clima de autoritarismo então reinante e que
colocava cada intelectual, cada cidadão, no papel de um náufrago
em um bote diante de uma entidade enigmática e ameaçadora.
Por outro lado, sou de um grupo
humano que foi perseguido e exterminado sob o regime nazista,
do qual Max fugiu, para recomeçar a vida no Brasil.
Foi interessante ver a idéia de
outra forma. Representa, até certo
ponto, um reconhecimento. Perturbado, naturalmente, pela polêmica. Que poderia ser evitada mediante as regras de convivência
que até na literatura fazem falta.
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