São Paulo, terça-feira, 16 de novembro de 2004

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Reconstrução da memória

Nei Lopes e Abdias Nascimento fazem revisão do papel da intelectualidade afro-descendente, na Semana da Consciência Negra

LUIZ FERNANDO VIANNA
DA SUCURSAL DO RIO

Na Semana da Consciência Negra -que marca o aniversário da morte de Zumbi dos Palmares (sábado, dia 20), em 1695-, o encontro entre os amigos Abdias Nascimento e Nei Lopes adquire um sentido especial, em um momento em que a figura do intelectual negro começa a se consolidar. Os dois se aproximam hoje, na abertura da exposição "Abdias Nascimento, 90 Anos - Memória Viva", que terá show do compositor no Arquivo Nacional, no Rio.
Enquanto o primeiro tem repassada e reverenciada na mostra sua vida de intelectual e militante negro, o segundo chega, aos 62 anos, ao ponto mais alto dessa mesma trajetória lançando "Enciclopédia Brasileira da Diáspora Africana" (Selo Negro/Summus).
São 9.000 verbetes, distribuídos em 720 páginas, apresentando personalidades -políticos, artistas, jogadores de futebol etc.-, conceitos, traços culturais e fatos históricos ligados aos descendentes de africanos em todo o mundo, especialmente no Brasil.
Além da importância em si da obra, resultado de toda a vida de Lopes, a enciclopédia marca um momento em que a figura do intelectual negro no Brasil é menos rara e sofre menos preconceitos.
"Não é que a situação tenha melhorado. A gente fez ficar melhor", ressalta Nascimento. "É uma reivindicação antiga dos movimentos negros: que os protagonistas do discurso afro-descendente sejam os próprios afro-descendentes. É uma situação que está se modificando. [O geógrafo] Milton Santos [1926-2001] ganhou projeção, mas era visto quase como um ET", diz Lopes.
Ele enxerga, no meio acadêmico, vários nomes na faixa dos 40 anos se firmando: Marcelo Paixão, Flávio Gomes, Álvaro Nascimento e Carlos Alberto Medeiros. O fortalecimento deles pode ter como conseqüência o aumento das chances de reconhecimento de intelectuais negros de gerações anteriores, como Guerreiro Ramos, Hélio Santos e Muniz Sodré.
"Os donos do discurso sobre a cultura negra eram os chamados folcloristas, como Gilberto Freyre e Mário de Andrade, que nunca se assumiu como negro. Na história, o negro entrava apenas como objeto", aponta Lopes.
Freyre é o paradigma de uma tradição das ciências sociais brasileiras que os intelectuais afro-brasileiros combatem. A socióloga norte-americana Elisa Larkin Nascimento, casada há 29 anos com Abdias, diz que Freyre, em "Casa-Grande & Senzala", só fala da "casa-grande, não vai na senzala". "É uma visão baseada no critério de raça, biológico, uma abordagem eurocentrista. Freyre e outros pensadores observam a cultura africana a partir do lúdico: o futebol e o Carnaval. Como se não houvesse uma grande produção de conhecimento na tradição africana", diz a socióloga.
Lopes encarna os dois pólos: faz sambas sem sinais explícitos de militância; como intelectual, ganhou fama de radical por defender os direitos dos negros.
"Isso [os dois pólos] não deve ser motivo de estranhamento. É uma questão de jogo de cintura. O samba garante meu sustento, mas não me dá respeitabilidade. Qualquer roqueiro vagabundo é mais respeitado. Agora, no limiar da minha existência, é hora de buscar esse respeito", diz Lopes.
Lopes e Abdias consideram prioridade a conquista das cotas nas universidades, que poderiam compensar o que chamam de discriminação histórica. "Eu já propunha isso [as cotas] nos anos 40 e até hoje há resistência. Eles têm medo do negro que sabe, consideram um perigo", afirma Abdias.
Para o artista plástico Emanoel Araújo, que mora em São Paulo, ainda há poucos intelectuais negros no Brasil discutindo as questões que envolvem o universo da raça. "Precisamos formar ainda mais gente", diz. Araújo não acredita que a atitude de Freyre é preconceituosa e diz que sua "abordagem é diferente". "Ele foi o primeiro a escrever mais profundamente sobre uma relação de vítima; entra na questão da casa grande e da senzala. A questão é muito difícil quando é vista pelo outro lado. Ela pode ser romantizada, pode ser glamourizada."
Araújo diz que a problemática é uma "questão de memória". "É uma relação mal resolvida do ponto de vista da história. Hoje vivemos um momento de exclusão social, de dívida histórica, de educação; ainda é resultado daquele momento da escravidão."


Colaborou Isabelle Moreira Lima, da Reportagem Local

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