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Reconstrução da memória
Nei Lopes e Abdias Nascimento fazem revisão do papel da intelectualidade afro-descendente, na Semana da Consciência Negra
LUIZ FERNANDO VIANNA
DA SUCURSAL DO RIO
Na Semana da Consciência Negra -que marca o aniversário da
morte de Zumbi dos Palmares
(sábado, dia 20), em 1695-, o encontro entre os amigos Abdias
Nascimento e Nei Lopes adquire
um sentido especial, em um momento em que a figura do intelectual negro começa a se consolidar.
Os dois se aproximam hoje, na
abertura da exposição "Abdias
Nascimento, 90 Anos - Memória
Viva", que terá show do compositor no Arquivo Nacional, no Rio.
Enquanto o primeiro tem repassada e reverenciada na mostra
sua vida de intelectual e militante
negro, o segundo chega, aos 62
anos, ao ponto mais alto dessa
mesma trajetória lançando "Enciclopédia Brasileira da Diáspora
Africana" (Selo Negro/Summus).
São 9.000 verbetes, distribuídos
em 720 páginas, apresentando
personalidades -políticos, artistas, jogadores de futebol etc.-,
conceitos, traços culturais e fatos
históricos ligados aos descendentes de africanos em todo o mundo, especialmente no Brasil.
Além da importância em si da
obra, resultado de toda a vida de
Lopes, a enciclopédia marca um
momento em que a figura do intelectual negro no Brasil é menos
rara e sofre menos preconceitos.
"Não é que a situação tenha melhorado. A gente fez ficar melhor", ressalta Nascimento. "É
uma reivindicação antiga dos movimentos negros: que os protagonistas do discurso afro-descendente sejam os próprios afro-descendentes. É uma situação que está se modificando. [O geógrafo]
Milton Santos [1926-2001] ganhou projeção, mas era visto quase como um ET", diz Lopes.
Ele enxerga, no meio acadêmico, vários nomes na faixa dos 40
anos se firmando: Marcelo Paixão, Flávio Gomes, Álvaro Nascimento e Carlos Alberto Medeiros.
O fortalecimento deles pode ter
como conseqüência o aumento
das chances de reconhecimento
de intelectuais negros de gerações
anteriores, como Guerreiro Ramos, Hélio Santos e Muniz Sodré.
"Os donos do discurso sobre a
cultura negra eram os chamados
folcloristas, como Gilberto Freyre
e Mário de Andrade, que nunca se
assumiu como negro. Na história,
o negro entrava apenas como objeto", aponta Lopes.
Freyre é o paradigma de uma
tradição das ciências sociais brasileiras que os intelectuais afro-brasileiros combatem. A socióloga
norte-americana Elisa Larkin
Nascimento, casada há 29 anos
com Abdias, diz que Freyre, em
"Casa-Grande & Senzala", só fala
da "casa-grande, não vai na senzala". "É uma visão baseada no
critério de raça, biológico, uma
abordagem eurocentrista. Freyre
e outros pensadores observam a
cultura africana a partir do lúdico:
o futebol e o Carnaval. Como se
não houvesse uma grande produção de conhecimento na tradição
africana", diz a socióloga.
Lopes encarna os dois pólos: faz
sambas sem sinais explícitos de
militância; como intelectual, ganhou fama de radical por defender os direitos dos negros.
"Isso [os dois pólos] não deve
ser motivo de estranhamento. É
uma questão de jogo de cintura. O
samba garante meu sustento, mas
não me dá respeitabilidade. Qualquer roqueiro vagabundo é mais
respeitado. Agora, no limiar da
minha existência, é hora de buscar esse respeito", diz Lopes.
Lopes e Abdias consideram
prioridade a conquista das cotas
nas universidades, que poderiam
compensar o que chamam de discriminação histórica. "Eu já propunha isso [as cotas] nos anos 40
e até hoje há resistência. Eles têm
medo do negro que sabe, consideram um perigo", afirma Abdias.
Para o artista plástico Emanoel
Araújo, que mora em São Paulo,
ainda há poucos intelectuais negros no Brasil discutindo as questões que envolvem o universo da
raça. "Precisamos formar ainda
mais gente", diz. Araújo não acredita que a atitude de Freyre é preconceituosa e diz que sua "abordagem é diferente". "Ele foi o primeiro a escrever mais profundamente sobre uma relação de vítima; entra na questão da casa
grande e da senzala. A questão é
muito difícil quando é vista pelo
outro lado. Ela pode ser romantizada, pode ser glamourizada."
Araújo diz que a problemática é
uma "questão de memória". "É
uma relação mal resolvida do
ponto de vista da história. Hoje vivemos um momento de exclusão
social, de dívida histórica, de educação; ainda é resultado daquele
momento da escravidão."
Colaborou Isabelle Moreira Lima, da
Reportagem Local
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