São Paulo, terça-feira, 16 de novembro de 2004

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CONSCIÊNCIA NEGRA

Autor lança enciclopédia com 9.000 verbetes sobre afro-descendência com sua visão pessoal do assunto

Nei Lopes tira "africanidades" do armário

DA SUCURSAL DO RIO

A "Enciclopédia Brasileira da Diáspora Africana" é o 14º livro de Nei Lopes -que tem outros dois no prelo e mais dois sendo escritos. Como os anteriores, foi feito sem patrocínio. A editora comprou a obra já pronta. Isso significa que os 9.000 verbetes foram escritos por ele, sem ajuda.
Absurdo por um lado, esse aspecto tem uma vantagem: Lopes teve total liberdade para expressar suas idéias. "É uma enciclopédia que não é impessoal. Eu dou opinião. Ela é minha, posso fazer o que eu quiser", diz.
Mas evita o panfletarismo. Sobre Mário de Andrade, escreve que "sua postura intelectual e pessoal diante de suas origens africanas mereceu algumas críticas da militância negra". Sobre Machado de Assis, fala que "embora atuasse na imprensa e fosse amigo de abolicionistas eminentes, manteve-se impavidamente alheio à campanha pela abolição da escravidão negra no Brasil".
Uma das opções-chave foi a de "visibilizar africanidades que estão no armário". Ou seja, indicar como afro-descendente pessoas que nem sempre são vistas dessa forma. É o caso de Mário de Andrade, do padre Antônio Vieira, do ex-presidente Nilo Peçanha, do jornalista Irineu Marinho e de d. Lucas Moreira Neves.
Há também reparações históricas, verbetes que ressaltam pessoas que não tiveram seu valor reconhecido ou foram tratadas como brancas. É o caso do médico Joaquim Cândido Soares de Meireles (1777-1868), que foi pintado para painel da Academia Brasileira de Medicina com "traços caucasóides e cabelos lisos", embora uma litografia da Biblioteca Nacional o mostre como negro.
Formalmente, a enciclopédia começou a ser escrita em 1995, mas as origens remontam aos 12, 13 anos de Lopes. "Eu só via preto nos jornais e revistas em situação desfavorável. Quando favorável, normalmente era estrangeiro. Sendo favorável, eu guardava."
Anos depois, começou a fazer fichas sobre essas pessoas e assuntos. Mas a grande virada veio de maneira trágica: em 1981, perdeu um filho, afogado aos quatro anos. "O choque se manifestou em mim de um modo interessante: passei a ler obsessivamente, até desordenadamente, e comecei a comprar dicionários", lembra.
Os verbetes passaram a ser vistos como o formato ideal a ser adotado por um advogado "sem formação acadêmica", que nunca fez mestrado. "Minha intenção é divulgar esse conhecimento, que é muito esparso, de difícil acesso."
Antes da enciclopédia, tinha lançado o "Dicionário Banto do Brasil", uma das fontes do "Houaiss". Foi um reconhecimento de sua trajetória intelectual, que, por diletante e militante, continua alvo de preconceitos.
Na enciclopédia, é firme em vários momentos, como na definição de negro da abertura, capaz de abranger boa parte da população: "Todo descendente de negro-africano, em qualquer grau de mestiçagem, desde que a origem possa ser identificada historicamente e, no caso de personalidades contemporâneas vivas, seja reconhecida pelo focalizado". "É claro que é uma posição política."
Mesmo tendo dispensado o humor de suas letras de música, evita os clichês da militância, o que garante a boa leitura. "Acho que todo estereótipo é ruim. Não uso o sociologuês que rola por aí. Para mim, resgate da identidade é quando deixa o documento na recepção e pega na saída." (LFV)


ENCICLOPÉDIA BRASILEIRA DA DIÁSPORA AFRICANA. Autor: Nei Lopes. Editora: Selo Negro/Summus. Quanto: R$ 129 (720 págs.).


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