São Paulo, terça-feira, 16 de novembro de 2004

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FERNANDO BONASSI

Afinal, de quem é o corpo da mulher?

Quem vai dizer às mulheres a quem pertencem seus corpos? Um bedel concursado? Um malandro escolado? Um sindicato subsidiado?
Quem são esses estupradores furtivos que se metem no meio delas, fazendo o que bem entendem ser o melhor pra si mesmos? Apresentadores de televisão? Caçadores aposentados? Corretores de ocasião?
Então são esses machos que vão dizer a quem pertence os corpos das fêmeas?
Serão aqueles que pensam possuí-las? Mas não deveriam estes se perguntar se realmente sabem onde vagam os inconscientes das suas mulheres e por quem suspiram seus pulmões em meios às desilusões das que sonham com dias e leis melhores do que essas?
Quem serão os sabichões a expelirem opiniões quanto à tragédia de uma cria, mães e filhas perdidas, sustentadas por umbigos enrolados e corações desanimados? Serão os seguranças privados? Os militares reformados? Os promotores afobados?
Até quando se darão um direito de julgar apenas o que é certo neste mundo de sem-vergonhice e defeitos de Deus? Quem são essas igrejas que não aceitam terem sido descoladas do nosso Estado de coisas? Não bastam as tantas Virgens Marias que morrem nas macas do abandono público desse republicanismo de bananas?
Qual será o especialista que vai mostrar onde acaba o corpo dos postulados da legislação e onde começa o corpo em aflição dessas mulheres? Um patologista? Um garagista? Um oculista? Serão estes que vão solicitar por ofício que as mulheres aguardem sua vez na fila de uma greve parcial ou no reexame diabólico de seu inferno judiciário, enquanto as barrigas incham de fetos queridos com hora marcada pra morrer?
Quem é que não tem cérebro nessa história toda, além das próprias crianças ligadas às suas mães para sempre enquanto duram juntas nessa gravidez de luto? Serão os caducos que vão dizer quem deve viver maluco? Pois vão precisar de argumentos astutos ao pedir às mulheres grávidas que esperem, nutrindo seus filhos para enterrá-los em seguida, como as seguidas guerras humanas ensinaram essas mulheres de véus entre céus e terras.
Você, por exemplo, será capaz de dizer a elas qual é a sua dor maior? E a delas? Quem você pensa que é? Um mau ator? Um moralista ultrapassado? Um gozador inveterado?
Quem terá coragem de dizer a essas mulheres marcadas pela maternidade entrevada qual a coisa justa e certa para esquecer que carregam um bebê morto? Um padre? Um pastor? As ovelhas magras?
Até quando os códigos esclerosados serão invocados e desculpados em liminares milenares?
O que essas mulheres podem esperar de legisladores nomeados e cartórios hereditários?
Quem se protege tecnicamente pode decretar solenemente o sofrimento de outras mentes?
Já que faço parte dos que auxiliam a pagar esses agentes (e com gosto, porque ainda não inventamos nada mais civilizado que o direito), eu teria preferido os que julgam o mérito clínico ao técnico; o ético ao religioso; a inteligência à jurisprudência.
São esses os melhores donos dos corpos das mulheres? Aqueles que os mandam blindar num processo, como essa elite de complexos aos seus carros importados? Estamos punindo algum excesso dessas pobres coitadas? Qual que já não tivemos?
Só quero é ver quem vai receber o pagamento pra explicar às mulheres em lamento que esta gleba de funcionários desempregados está se dobrando aos interesses ocultos dos alquimistas reacionários, porque é mais viril do que civil, é mais canônica que harmônica, é mais usada que ousada.
Porque as mulheres continuarão existindo em seus corpos e fazendo abortos mais ou menos involuntários todo dia, a despeito da hipocrisia dos que em geral só conseguem gerar burocracia.
Ou levamos a sério aquelas boas e velhas idéias de constituição que deram aos corpos desses hominídeos subdesenvolvidos o pleno exercício de sua liberdade cívica e física, ou voltaremos para trás das trevas da burrice de verdade, proibindo, daqui há pouco, a medicina da fertilidade, o ultra-som, o raio X, a anestesia... O terror dessas espadas geladas será brandido a sangue frio, quando as mulheres sentirem na carne inchada o desprezo dos estéreis que as cercam.
Pode ser que nesse momento o entendimento se torne desnecessário, pois esses balcões de negociações é que autorizarão o que presta e o que não para cada cidadão. Nesse caso o que fazer do amor, que por deveras subjetivo e pouco adaptativo às especificidades dos manuais jurídicos de auto-ajuda, pode desandar em maus atos de exceção furibunda?
Se o outro mundo é do criador, esse é das criaturas, ainda que esta ditadura legalista seja uma criação demasiadamente humana, por mais incoerentemente insana.
O corpo da mulher é o corpo da mulher, ou deveria ser. Só as mulheres poderão se proteger daqueles que, em nome de suas vontades, seqüestram-lhe a possibilidade de escolher, de pensar, de agir.
Enquanto esperarem pelos homens, sejam de branco, sejam de preto, terão o que tiveram até agora.


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