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FERNANDO BONASSI
Afinal, de quem é o corpo da mulher?
Quem vai dizer às mulheres a
quem pertencem seus corpos? Um bedel concursado? Um
malandro escolado? Um sindicato
subsidiado?
Quem são esses estupradores furtivos que se metem no meio delas,
fazendo o que bem entendem ser o
melhor pra si mesmos? Apresentadores de televisão? Caçadores aposentados? Corretores de ocasião?
Então são esses machos que vão
dizer a quem pertence os corpos
das fêmeas?
Serão aqueles que pensam possuí-las? Mas não deveriam estes se
perguntar se realmente sabem onde vagam os inconscientes das
suas mulheres e por quem suspiram seus pulmões em meios às desilusões das que sonham com dias
e leis melhores do que essas?
Quem serão os sabichões a expelirem opiniões quanto à tragédia
de uma cria, mães e filhas perdidas, sustentadas por umbigos
enrolados e corações desanimados? Serão os seguranças privados?
Os militares reformados? Os promotores afobados?
Até quando se darão um direito
de julgar apenas o que é certo neste mundo de sem-vergonhice e defeitos de Deus? Quem são essas
igrejas que não aceitam terem sido
descoladas do nosso Estado de coisas? Não bastam as tantas Virgens
Marias que morrem nas macas do
abandono público desse republicanismo de bananas?
Qual será o especialista que vai
mostrar onde acaba o corpo dos
postulados da legislação e onde começa o corpo em aflição dessas
mulheres? Um patologista? Um
garagista? Um oculista? Serão estes que vão solicitar por ofício que
as mulheres aguardem sua vez na
fila de uma greve parcial ou no
reexame diabólico de seu inferno
judiciário, enquanto as barrigas
incham de fetos queridos com hora marcada pra morrer?
Quem é que não tem cérebro
nessa história toda, além das próprias crianças ligadas às suas
mães para sempre enquanto duram juntas nessa gravidez de luto?
Serão os caducos que vão dizer
quem deve viver maluco? Pois vão
precisar de argumentos astutos ao
pedir às mulheres grávidas que esperem, nutrindo seus filhos para
enterrá-los em seguida, como as
seguidas guerras humanas ensinaram essas mulheres de véus entre
céus e terras.
Você, por exemplo, será capaz de
dizer a elas qual é a sua dor
maior? E a delas? Quem você pensa que é? Um mau ator? Um moralista ultrapassado? Um gozador
inveterado?
Quem terá coragem de dizer a
essas mulheres marcadas pela maternidade entrevada qual a coisa
justa e certa para esquecer que
carregam um bebê morto? Um padre? Um pastor? As ovelhas magras?
Até quando os códigos esclerosados serão invocados e desculpados
em liminares milenares?
O que essas mulheres podem esperar de legisladores nomeados e
cartórios hereditários?
Quem se protege tecnicamente
pode decretar solenemente o sofrimento de outras mentes?
Já que faço parte dos que auxiliam a pagar esses agentes (e com
gosto, porque ainda não inventamos nada mais civilizado que o direito), eu teria preferido os que julgam o mérito clínico ao técnico; o
ético ao religioso; a inteligência à
jurisprudência.
São esses os melhores donos dos
corpos das mulheres? Aqueles que
os mandam blindar num processo,
como essa elite de complexos aos
seus carros importados? Estamos
punindo algum excesso dessas pobres coitadas? Qual que já não tivemos?
Só quero é ver quem vai receber
o pagamento pra explicar às mulheres em lamento que esta gleba
de funcionários desempregados
está se dobrando aos interesses
ocultos dos alquimistas reacionários, porque é mais viril do que civil, é mais canônica que harmônica, é mais usada que ousada.
Porque as mulheres continuarão
existindo em seus corpos e fazendo
abortos mais ou menos involuntários todo dia, a despeito da hipocrisia dos que em geral só conseguem gerar burocracia.
Ou levamos a sério aquelas boas
e velhas idéias de constituição que
deram aos corpos desses hominídeos subdesenvolvidos o pleno
exercício de sua liberdade cívica e
física, ou voltaremos para trás
das trevas da burrice de verdade,
proibindo, daqui há pouco, a medicina da fertilidade, o ultra-som,
o raio X, a anestesia... O terror
dessas espadas geladas será brandido a sangue frio, quando as
mulheres sentirem na carne inchada o desprezo dos estéreis que
as cercam.
Pode ser que nesse momento o
entendimento se torne desnecessário, pois esses balcões de negociações é que autorizarão o que
presta e o que não para cada cidadão. Nesse caso o que fazer do
amor, que por deveras subjetivo e
pouco adaptativo às especificidades dos manuais jurídicos de auto-ajuda, pode desandar em
maus atos de exceção furibunda?
Se o outro mundo é do criador,
esse é das criaturas, ainda que esta ditadura legalista seja uma
criação demasiadamente humana, por mais incoerentemente insana.
O corpo da mulher é o corpo da
mulher, ou deveria ser. Só as mulheres poderão se proteger daqueles que, em nome de suas vontades, seqüestram-lhe a possibilidade de escolher, de pensar, de agir.
Enquanto esperarem pelos homens, sejam de branco, sejam de
preto, terão o que tiveram até
agora.
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