São Paulo, sábado, 16 de dezembro de 2000

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RESENHA DA SEMANA

Desautomatização

BERNARDO CARVALHO
COLUNISTA DA FOLHA



Herberto Helder, 70, é muito provavelmente o maior poeta português vivo. É o que responderá grande parte dos poetas portugueses a quem se fizer a pergunta.
Com 29 livros de poemas e dois de prosa publicados ao longo de mais de 40 anos, Herberto Helder estabeleceu parâmetros inusitados dentro da poesia portuguesa. Daí a perplexidade que provoca a coletânea "O Corpo o Luxo a Obra", reunindo poemas de vários livros do autor até então inédito no Brasil. Trata-se de um poeta único, irredutível, avesso às homenagens e à vida literária, e cuja discrição pessoal é proporcional à exuberância dos seus versos.
Ler um poema de Herberto Helder é uma alegria. Sua poesia costuma ser definida como "órfica", "encantatória", "barroca". "Herberto Helder impulsiona a viva encantação das palavras, o abalo que sua poesia provoca é um dos mais profundos que a literatura de língua portuguesa já sofreu. (...) Poesia decisiva e órfã, a insubmissão de Herberto Helder é única na generalidade da literatura de língua portuguesa", escreve Jorge Henrique Bastos, organizador dessa edição e autor do prefácio.
A melhor poesia contemporânea não costuma esclarecer, mas problematizar. É praticamente impossível compreender de chofre um poeta como Paul Celan, sem um guia de apoio. O esclarecimento vem, por vias indiretas, pela problematização e pelo esforço. É a dificuldade que dá a entender que já não se pode -e já não se quer- dizer a mesma coisa. À poesia cabe romper o círculo vicioso dos significados automatizados.
Maria Lúcia Dal Farra também se refere a "decifrações cada vez mais problemáticas" em relação a Herberto Helder no posfácio dessa edição da Iluminuras. Mas onde Celan problematizava pela falta e pelo silêncio, o poeta português recorre à exuberância de combinações espantosamente evocativas, inesperadas e intercambiantes. "Uma maneira absolutamente rigorosa de dizer o arbitrário, um jeito de fazer cada palavra ser, com segurança, outra coisa que não ela mesma", escreve Dal Farra.
Herberto Helder diz o impensado e o não-dito -não pelo silêncio, mas por felizes incongruências. É a beleza da potência e da capacidade de dizer o que nunca se disse, tornando compatível o que antes era incompatibilidade, que jorra novamente desses versos. Onde parecia só restar o silêncio, Herberto Helder canta uma "escrita impossível". Faz uma "desautomatização do sentido" por meio de "conexões semânticas (...) ainda inexploradas pela cultura" (Dal Farra): "Tudo morre o seu nome noutro nome" ("Poemacto", 1961), "canta até te mudares em azul" ("Lugar", 1961-1962).
Herberto Helder é desses poetas cuja força assombrosa persegue o leitor após a leitura e muitas vezes, sob a influência daquela impressão, o leva a falar e escrever à maneira do poeta. Sua leitura equivale à descoberta de uma nova linguagem (e da possibilidade mágica de uma nova linguagem) pela criança que, depois de ter aprendido as primeiras palavras de um outro idioma, vê um novo mundo se revelar à sua frente ao abrir a boca.

Falar de uma poeta como Adília Lopes, 40, ao final de uma coluna dedicada a Herberto Helder também pode parecer de uma grande incongruência. É o que provavelmente responderiam os poetas portugueses a quem se pedisse licença.
Mas, sendo a inconveniência uma das qualidades que definem essa poeta dentro do quadro da jovem poesia portuguesa, é difícil pensar em algo mais apropriado.
Grande parte dos poetas portugueses acha que Adília Lopes não faz poesia. Talvez não faça e, por isso mesmo, seja poeta. Adília sofre do que ela mesma define como uma "psicose esquizo-afetiva". Já esteve internada quatro vezes. Publicou 14 coletâneas desde 1985. Dois de seus poemas foram incluídos num dossiê de poesia portuguesa publicado no último número (9) da revista "Inimigo Rumor" (novembro 2000). São poderosos. Ninguém deveria deixar de lê-los.


O Corpo o Luxo a Obra     
Autor: Herberto Helder
Editora: Iluminuras
Quanto: R$ 27 (160 págs.)




Revista: Inimigo Rumor 9
Editora: 7 Letras (tel. 0/xx/21/ 540-0037; www.7letras.com.br)
Quanto: R$ 15 (112 págs.)




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