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RESENHA DA SEMANA
Desautomatização
BERNARDO CARVALHO
COLUNISTA DA FOLHA
Herberto Helder, 70, é
muito provavelmente o
maior poeta português vivo. É o
que responderá grande parte
dos poetas portugueses a quem
se fizer a pergunta.
Com 29 livros de poemas e
dois de prosa publicados ao longo de mais de 40 anos, Herberto
Helder estabeleceu parâmetros
inusitados dentro da poesia portuguesa. Daí a perplexidade que
provoca a coletânea "O Corpo o
Luxo a Obra", reunindo poemas
de vários livros do autor até então inédito no Brasil. Trata-se de
um poeta único, irredutível,
avesso às homenagens e à vida
literária, e cuja discrição pessoal
é proporcional à exuberância
dos seus versos.
Ler um poema de Herberto
Helder é uma alegria. Sua poesia
costuma ser definida como "órfica", "encantatória", "barroca".
"Herberto Helder impulsiona a
viva encantação das palavras, o
abalo que sua poesia provoca é
um dos mais profundos que a literatura de língua portuguesa já
sofreu. (...) Poesia decisiva e órfã, a insubmissão de Herberto
Helder é única na generalidade
da literatura de língua portuguesa", escreve Jorge Henrique Bastos, organizador dessa edição e
autor do prefácio.
A melhor poesia contemporânea não costuma esclarecer, mas
problematizar. É praticamente
impossível compreender de
chofre um poeta como Paul Celan, sem um guia de apoio. O esclarecimento vem, por vias indiretas, pela problematização e
pelo esforço. É a dificuldade que
dá a entender que já não se pode
-e já não se quer- dizer a
mesma coisa. À poesia cabe
romper o círculo vicioso dos significados automatizados.
Maria Lúcia Dal Farra também se refere a "decifrações cada vez mais problemáticas" em
relação a Herberto Helder no
posfácio dessa edição da Iluminuras. Mas onde Celan problematizava pela falta e pelo silêncio, o poeta português recorre à
exuberância de combinações espantosamente evocativas, inesperadas e intercambiantes.
"Uma maneira absolutamente
rigorosa de dizer o arbitrário,
um jeito de fazer cada palavra
ser, com segurança, outra coisa
que não ela mesma", escreve Dal
Farra.
Herberto Helder diz o impensado e o não-dito -não pelo silêncio, mas por felizes incongruências. É a beleza da potência
e da capacidade de dizer o que
nunca se disse, tornando compatível o que antes era incompatibilidade, que jorra novamente
desses versos. Onde parecia só
restar o silêncio, Herberto Helder canta uma "escrita impossível". Faz uma "desautomatização do sentido" por meio de
"conexões semânticas (...) ainda
inexploradas pela cultura" (Dal
Farra): "Tudo morre o seu nome
noutro nome" ("Poemacto",
1961), "canta até te mudares em
azul" ("Lugar", 1961-1962).
Herberto Helder é desses poetas cuja força assombrosa persegue o leitor após a leitura e muitas vezes, sob a influência daquela impressão, o leva a falar e
escrever à maneira do poeta. Sua
leitura equivale à descoberta de
uma nova linguagem (e da possibilidade mágica de uma nova
linguagem) pela criança que, depois de ter aprendido as primeiras palavras de um outro idioma, vê um novo mundo se revelar à sua frente ao abrir a boca.
Falar de uma poeta como Adília Lopes, 40, ao final de uma coluna dedicada a Herberto Helder também pode parecer de
uma grande incongruência. É o
que provavelmente responderiam os poetas portugueses a
quem se pedisse licença.
Mas, sendo a inconveniência
uma das qualidades que definem essa poeta dentro do quadro da jovem poesia portuguesa, é difícil pensar em algo mais
apropriado.
Grande parte dos poetas portugueses acha que Adília Lopes
não faz poesia. Talvez não faça e,
por isso mesmo, seja poeta. Adília sofre do que ela mesma define como uma "psicose esquizo-afetiva". Já esteve internada
quatro vezes. Publicou 14 coletâneas desde 1985. Dois de seus
poemas foram incluídos num
dossiê de poesia portuguesa publicado no último número (9)
da revista "Inimigo Rumor"
(novembro 2000). São poderosos. Ninguém deveria deixar de
lê-los.
O Corpo o Luxo a Obra
Autor: Herberto Helder
Editora: Iluminuras
Quanto: R$ 27 (160 págs.)
Revista: Inimigo Rumor 9
Editora: 7 Letras (tel. 0/xx/21/ 540-0037; www.7letras.com.br)
Quanto: R$ 15 (112 págs.)
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